quarta-feira, 24 de abril de 2024

Visita Surpresa

Certo dia, um vizinho veio me contar que um amigo dele havia morrido. Isso causou um choque em mim e em outros amigos em comum. Todo mundo vai morrer, isso a gente sabe. No entanto, está subentendido na sociedade que há idades “apropriadas” para se morrer; ademais, não espera-se que uma pessoa que estava malhando no dia anterior (!) morra de forma repentina. O horror provém dessas crenças. O homem que morreu era jovem e esbanjava uma suposta saúde. 

Ele estava tomando café numa lanchonete. Os outros clientes só ouviram o barulho da queda. O cara morreu “do nada”. Caiu da cadeira, chegou ao chão já morto. Nem adiantaria chamar a ambulância. O acontecimento levou a reflexões sobre a fragilidade da vida.

- O cara estava bom ontem! Como ele pode ter morrido? - comentei isso com meu pai.

- A vida é assim! - respondeu meu pai. - Você está bom numa hora e de repente…

A situação é pior em bairros violentos e com infraestrutura de baixa qualidade. Suspeito que as “mortes repentinas” sejam mais prováveis em regiões mais pobres. Em locais assim, a causa mortis não vem somente de um vírus, de um ataque cardíaco (que matou o amigo do meu vizinho), de um derrame ou coisa parecida. A pessoa pode ser vítima da barbárie. Exemplos não faltam.

Lembro que eu e meus amigos assistíamos (involuntariamente) um rapaz agredir sua namorada enquanto ambos subiam as escadarias da rua onde morávamos. Era perturbador. Ele não apenas batia como também a agredia verbalmente. Esse “espetáculo” da desgraça alheia (olhares surgiam das janelas) ocorria toda sexta-feira. Como se sabe, é o dia do “sextou”, o que implica em bebedeira e consequente violência. 

Até que chegou uma sexta-feira e não vimos o casal.

Mais outra sexta. E nada.

Mais outra…

Não vimos mais. Depois nos contaram que esse cara foi assassinado. 

- No dia anterior, ele havia ido à igreja e tinha aceitado Jesus. - me contou uma senhora. - Ele estava tão bem e feliz! No outro dia, mataram ele.

Eu e meus amigos ficamos especulando e suspeitávamos da namorada vítima de violência doméstica.

Outro exemplo: um rapaz correu atrás de outro com a intenção de agredi-lo. O alvo foi mais rápido e conseguiu escapar subindo uma das escadarias do bairro. O evento atraiu olhares, o que irritou o agressor em potencial.

- Vocês deveriam ir lavar uma roupa em vez de ficar vendo a vida dos outros! - ele disse.

No outro dia, ele foi assassinado em frente a uma farmácia.

Eu eu meus amigos, de novo, ficamos especulando.

- Tenho certeza que aquela velha ficou furiosa por ter sido acusada de “ver a vida dos outros”. Acho que foi ela quem mandou matar! - me disse um amigo.

Tempos depois, o alvo da agressão também foi assassinado!

Especulações e teorias à parte, me espanta como a vida pode ser frágil como um ovo. Todos os três mortos citados nesta crônica eram jovens. Em “Na Hora do Almoço”, Belchior alerta: “Deixemos de coisas, cuidemos da vida/Senão chega a morte ou coisa parecida/E nos arrasta moço sem ter visto a vida”. No Brasil, todos os dias a morte arrasta pessoas jovens.

E também me espanta o fato de não haver muita gente se desesperando por saber que a vida pode acabar a qualquer momento. Os psicólogos chamam isso de “Tolerância à Incerteza”. Parece-me que vivemos como se fôssemos imortais. 

terça-feira, 2 de abril de 2024

O Lapso

Se fosse possível, logo após a aula do Mestrado, eu iria correndo para o consultório do Dr. Jeremias Halma. 

“Quem?”, deve estar se perguntando o raro leitor. Ou pode ser que não. Há um grupo restrito que pode conhecê-lo. Mas antes de informar os desavisados, melhor contar a razão do meu desejo de ir me consultar com esse médico.

No intervalo da mesma aula, uma colega se aproximou de mim. Comentou sobre o que tínhamos acabado de ver. Mudei de assunto meio sem querer.

- Sabe que a aula de quinta-feira vai ser em outra sala, né?

- Sei. 

- Você não veio na quinta passada, então pensei que pudesse estar por fora.

- O professor fez chamada?

- Fez.

- E você está aprendendo o assunto da aula dele?

Em tese, sim, eu estou aprendendo. Todos os dias eu leio sobre esse assunto. Há muitas coisas que aprendi.  Todavia, a colega me pegou desprevenido mesmo assim. Me pediu a definição do termo que dá nome ao assunto em questão.

- É… tipo… é uma corrente filosófica que… explica a….- respondi. Ou melhor, tentei responder.

Em outras palavras, me enrolei ridiculamente. Um assunto que eu pensei que estava dominando. Veio a colega e destroçou minhas ilusões com uma pergunta básica. 

Durante a aula, fiquei refletindo sobre o assunto. E acabei elaborando, para mim mesmo, uma definição correta para o termo que ela me questionou. Eu só precisava refletir um pouco para dar uma boa resposta, mas por que isso não aconteceu na hora?

Penso que tive um lapso no momento em que tentava explicar para a colega. Foi essa conclusão que me levou a lembrar do Dr. Jeremias Halma.

O médico é uma criação do grande escritor Machado de Assis. Ele aparece no conto intitulado “O Lapso”, publicado no livro “Histórias sem Data” (1884). Uma breve sinopse: um homem chamado Tomé Gonçalves - que era “exato em todas as coisas, pontual nas obrigações, severo e até meticuloso” - havia perdido a “noção de pagar”, segundo o diagnóstico do Dr. Jeremias, o que implicava em calotes. Mas o paciente não fazia isso de propósito. “Esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se-lhe da cabeça”. 

Em comparação, é possível que o meu suposto lapso seja distinto. Talvez o conceito de qualquer assunto seja varrido da minha cabeça bem na hora que eu precise explicar a alguém. Se for isso, estou ferrado. A carreira acadêmica exige apresentação de seminários e a capacidade de explicar assuntos de forma lógica e coerente. 

- A moléstia não é incurável. - me diria o Dr. Jeremias, como disse aos credores de Gonçalves. 

Ele, segundo a ficção machadiana, já havia curado um barbeiro, “que perdera a noção de espaço”, e uma “senhora na Catalunha”, “que perdera a noção do marido”.  O próximo paciente deveria ser eu, que perco a noção de qualquer assunto quando estou prestes a dissertar sobre ele para qualquer pessoa. 

- A cura está na própria faculdade. - me explicaria o Dr. Jeremias.

Ele curou Tomé Gonçalves depois de levá-lo para assistir a compra e venda de mercadorias e para ver a ação de pagar, entre outras coisas. A minha cura seria assistir com mais frequência outros alunos explicando sobre qualquer tema. 

Na quinta-feira, a colega não apareceu para a aula de novo. Quando a questionei, ela disse que tinha perdido a noção de sala de aula. 

sexta-feira, 1 de março de 2024

Trevisan no supermercado

Sexta-feira. Vou a um supermercado que fica em Brotas. Criei um hábito. Toda semana vou nesse estabelecimento para comprar alguma coisa: normalmente é uma garrafa de refrigerante ou macarrão instantâneo. Mas hoje vou prestar mais atenção em outras seções. É um mercado que fica um pouco distante de casa. Há outros mais próximos. No entanto, eu vou até lá só para poder fazer exercício físico no caminho. Andar é bom.
Depois de caminhar 1,3 km, chego no supermercado. No estacionamento, um carro para e duas pessoas saem: um homem e uma mulher. O homem é gordo, imenso, possui um traço imponente e é calvo. Lembra o Tony Soprano. A mulher parece ser esposa. Linda e aparentemente mais jovem que ele. Ambos entraram logo depois de mim.
O casal parou para conversar com alguém e eu fui para a seção de higiene, que fica próxima à entrada/saída do estabelecimento. Enquanto me distraía escolhendo cuidadosamente a marca do papel higiênico, uma muvuca teve início. Não era uma briga feia. Longe disso. Era um bate-boca entre o homem que parece Tony e o segurança. Não consegui entender o motivo da briga. 
- Você viu se fui eu? VOCÊ VIU? - perguntou o homem, aumentando o tom de voz.
- Se acontecer de novo, vou ter que pedir para você se retirar. - respondeu o segurança.
- Ah, é?
- Eduardo… Amor… - disse a esposa, tentando tirar o marido da discussão. Ela foi bem-sucedida nisso.
Porém, escutei o homem dizer baixinho: “ele vai ver”.
Depois de passar o olho nas prateleiras com material de limpeza, vou à parte que interessa: a seção onde fica bebidas. Olho para garrafas de vinho, de rum, de saquê, de cachaça… Dá vontade de comprar tudo. Mas não compro. Levo só o refrigerante.
Vou para a fila. Há cinco caixas. Duas são reservadas aos clientes preferenciais. E elas podem ficar, mesmo que por um momento, sem nenhum cliente. Todavia, há espertinhos (não são "preferenciais") que sempre conseguem usá-las. São os “talentosos”. Andar pelo supermercado é uma arte. Requer a combinação de cuidado, velocidade e malícia. Requer a capacidade de perceber qual caixa está mais rápido. Escolho uma fila. Depois de 10 minutos sem essa mesma fila andar, percebo que não sou capaz de notar qual atendente é a mais veloz.
Atrás de mim estão uma senhora e uma moça mais nova. Conversam e mudam de assunto rapidamente. Com a lentidão da fila, não é exagero dizer que elas poderiam falar de centenas de assuntos ali mesmo. 
Foi então que deram início a uma conversa estarrecedora. Antes que o raro leitor me acuse de "escutar o papo alheio", me defendo: do jeito que elas conversavam, impossível não ouvir. E se quisessem privacidade para um tema tão sensível, não estariam falando disso numa fila de mercado.
A senhora contou que, no interior da Bahia, um homem espancou a esposa na primeira noite que passaram juntos. O motivo: “não era moça”, segundo as palavras de quem contava o relato. Depois disso, o agressor teria entrado em depressão e estava cada vez mais violento. Até que um dia ele torturou física e psicologicamente a mulher, para que contasse quem foi o homem que a deixou “impura”. Ela contou que foi um cara que vivia frequentando um específico bar na cidade. O marido foi ao bar e esfaqueou o cara. Na região, comentava-se que talvez a vítima fosse inocente. A mulher teria dado “qualquer nome” ao marido para que ele parasse de machucá-la.
Não ouvi o resto da história. Entretanto, isso me deixou reflexivo. Parece até enredo de um conto de Dalton Trevisan. Um dos motivos que tornam Trevisan um clássico da literatura nacional é a sua capacidade de descrever fidedignamente como eram os valores da sociedade brasileira há uns 60 anos. Quem lê o autor curitibano passa a entender como eram as entranhas de relações conjugais daquele tempo. Há situações que hoje consideraríamos bárbaras, mas que eram "toleráveis" naquela época. Percebe-se também que os direitos das mulheres avançaram bastante. Mesmo assim, ainda existem "buracos da História", em que acontecem coisas como o evento ambientado no interior baiano. Durante a minha reflexão, a fila andava e estava chegando minha vez.
Vou ser atendido. No outro caixa, vejo o homem parecido com Tony Soprano e sua esposa. Ele chegou nas filas depois de mim e está sendo atendido ao mesmo tempo que eu. Ou seja, ele domina a arte de andar pelo supermercado. 
Na hora do pagamento, ele tira um bolo de dinheiro do bolso e paga. Enquanto contava o dinheiro, comecei a cogitar sobre a possibilidade de ele ser realmente um gângster. O crime organizado curte dinheiro vivo. Ou talvez ele só fosse um homem honesto que se exaltou por um momento. E pagar comprinhas no mercado com dinheiro vivo não prova que alguém é criminoso.
Duas semanas depois, soube que o segurança, que discutiu com o homem, foi encontrado morto. 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

A era do carro elétrico

É cedo para dizer que o Brasil já está na era do carro elétrico? Acredito que sim. Mencionei “a era” mais como uma homenagem. Há quase 123 anos, João do Rio decretou: “E, subitamente, é a era do Automóvel”. Ele descreveu a máquina automotiva como um “monstro” que bufa. Pois são os “peidos” dos automóveis que ajudam a degradar o ambiente. O uso do carro elétrico seria mais sustentável. O carro elétrico não peida. É um avanço.

Mas com o carro elétrico emergem adaptações necessárias. João do Rio disse também que o automóvel “tudo transformou com aparências novas e novas aspirações”. O mesmo pode ser dito, mais de cem anos depois, do carro elétrico. Leio no jornal Valor Econômico que o “Carro elétrico agita reunião no condomínio”. É a manchete ipsis litteris. O carro não peida, mas exige carregamento pela tomada. Imagine um sujeito morando em um determinado condomínio. Ele compra um carro elétrico, percebe que a bateria está acabando, pega a tomada do veículo e observa que não há entrada adequada para carregar o carro. Ele vai furioso atrás do síndico.

- O condomínio de vocês não tem entrada para eu carregar meu carro.

- Sinto muito, isso aqui foi construído antes do carro elétrico começar a existir.

- Olha eu pago essa p… Então trate de dar um jeito.

- Senhor, se acalme para que possamos pensar numa solução…

- Eu quero carregar agora! 

O morador furioso precisaria de uma tomada de 220 volts aterrada. Ele tem um carregador portátil que veio junto com o carro. Porém, serão necessárias umas 12 horas para carregar a bateria. Se quiser sair com o carro no outro dia, ele precisa da tomada e do tempo.

- Eu vou trabalhar amanhã cedo! 

- O que posso fazer?!

O síndico precisaria adaptar a garagem do prédio, mas isso não é algo que se faça da noite para o dia. Ele precisaria de consultoria antes. Portanto, ele não poderia mesmo fazer nada naquele momento.

O morador o pega pelo colarinho. Mas o raro leitor fique tranquilo. O diálogo e a ação do morador são frutos da minha imaginação. Entretanto, descrevem algo que pode se tornar mais comum na medida que carros elétricos vão sendo adquiridos e se tornando mais frequentes no Brasil. Segundo a reportagem do Valor, houve discussão que foi parar na polícia.  

João do Rio disse que o automóvel de sua época foi “o grande transformador de formas lentas”. Atualmente, as novas necessidades que vão surgindo graças ao carro elétrico implicam no surgimento de novos serviços. O jornal mencionou a existência de uma empresa que se especializou em diagnósticos para a adaptação de edifícios ao carregamento de carros elétricos. É possível que eventualmente apareçam empresas de arbitragem especializadas em buscar consensos entre moradores a respeito da configuração elétrica do condomínio. Não vamos querer que o síndico apanhe ou que os moradores quebrem o pau entre si. Também não é bom ficar incomodando a polícia com discussões sobre tomada. 

É verdade que alguns moradores tentarão encontrar suas próprias soluções. Há aqueles que vão treinar artes marciais. Prevejo que junto com o crescimento do uso de carros elétricos haverá o aumento de números de alunos nas aulas de defesa pessoal. No formulário de inscrição, se houver, para as aulas de luta terá a seguinte opção na pergunta sobre os motivos para a matrícula: "você e/ou seu vizinho possuem carro elétrico". 

João do Rio percebeu outra coisa na sua época: o automóvel impacta até a linguagem. "A reforma começa, antes de andar, na linguagem e na ortografia". Ele fala sobre diálogos "bizarros" em que as pessoas citavam siglas e palavras em inglês. Com o carro elétrico, as conversas de hoje fatalmente terão suas siglas.

- Qual o seu carro?

- Volkswagen ID. 2ALL.

- É muito bonito! Só que eu quero um BYD Dolphin.

Mas voltemos à questão da engenharia civil. Não são apenas os edifícios com apartamentos que precisarão se adaptar aos carros elétricos. Shopping centers, como diz a reportagem do Valor, já estão cogitando instalar eletropontos com o intuito de atender clientes que possuem carros elétricos. É possível que ao longo dos anos o carro elétrico se torne universal nas pistas do Brasil - ou seja, que ele acabe se tornando “o ideal de toda a gente”, nas palavras de João do Rio. Isso quer dizer que toda a cidade vai precisar se adequar. Principalmente a vizinhança em condomínios. 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Dia do Comediante

Tive, e talvez ainda tenha, vocação para a comédia. E desde a infância. Em suas palavras (escritas) de despedida, minha professora da quarta série percebeu que se tornar comediante poderia ser um caminho para mim. Não foi em tom de zombaria. O que ela disse, ipsis litteris: “você […] tem a capacidade de alegrar todos à sua volta com suas histórias e suas trapalhadas”. Eu fui uma criança impulsiva, o que me levou a ser o “palhaço da turma”. Com a maturidade da vida, notei que ser comediante era mais do que palhaçadas improvisadas na sala de aula. 

Dá muito trabalho ser um bom comediante. A comédia é uma arte performática. Além disso, não há comédia sem público. Se você cria uma piada e conta ela num local onde não há absolutamente ninguém, isso não é comédia. Precisa ter gente rindo. Ou te xingando por causa da piada ruim. Então, para ser comediante, você tem que saber falar em público. 

Mas o mais complicado é criar piadas engraçadas. O comediante possui um texto. Mais difícil ainda é criar boas piadas com o improviso. Isso exige raciocínio rápido por parte do piadista. Uma boa capacidade de relacionar coisas aparentemente sem nenhuma ligação também ajuda bastante.

Para escrever bons textos e produzir boas performances é preciso estudar.

O fato é que não sou chegado a falar em público. Não se trata de medo. Eu sou do tipo recluso, como meus mestres literários Rubem Fonseca e Thomas Pynchon. Portanto, não sirvo para contar piadas diante de uma plateia. Posso até fazer piadinhas com amigos, mas se a roda de conversa enche, eu me contenho. 

O que eu gostaria era de escrever piadas que as pessoas pudessem ler e rir em suas casas. Há definições que distinguem o comediante do humorista. O primeiro, como eu disse, trata-se de uma pessoa que faz apresentação cômica. O segundo seria mais uma atividade intelectual. O humorista escreve artigos de humor, peças de comédia, anedotas etc. Pode se dizer que a comédia está mais próxima do teatro e o humorismo se aproxima da escrita jornalística.

Entre humorista e comediante, eu prefiro o primeiro. Desculpa, querida professora.

Outra coisa que me desestimulou para a carreira da comédia é a possibilidade de ser hostilizado pelo público. Se você conta piadas sem graça, na melhor das hipóteses a plateia te vaia ou te xinga. Na pior, você pode ser agredido fisicamente.

Há uma anedota sobre um comediante fracassado que era, vejam só, alvo de piadas. Imagina o piadista ser tão ruim que ele acaba se tornando vítima de chalaças produzidas por pessoas sem graça. 

No Bar de Comédia onde ele trabalhava, aconteciam frequentes altercações provocadas por gente que estava farta de comédia de péssima qualidade. A cada dia o público diminuía. Numa noite, depois ter contado uma piada politicamente incorreta que envolvia negros e esgoto, uma pessoa da plateia, visivelmente embriagada, foi direto ao ponto:

- Todo dia é essa merda!

- Quem sabe a p… da sua mãe sobe aqui e faz melhor! - retrucou o comediante.

- P… é a sua mãe, seu racista!

A troca de palavras gentis e elogiosas entre os dois descambou para um nível de violência que ninguém tinha visto por ali até então.

Tudo isso mostra que até na vida de comediante pode haver riscos. Talvez seja uma das profissões mais perigosas do mundo. Um público irritado com uma comédia de baixa qualidade pode se tornar agressivo.

Por outro lado, se o humorista produzir texto ruins, o que pode acontecer é o recebimento de “cartas do leitor” manifestando um tom crítico e feroz. O humorista não corre tantos riscos de sofrer agressão física. A não ser que ele irrite algum leitor sociopata, que pode querer ir à casa dele para fazer alguma besteira.

No entanto, nem tudo é ruim. O humorismo e a comédia ajudam a ter uma postura estoica diante das incertezas do mundo. 

O Isentão

Estava na entrada do cinema, com minha então namorada, quando notei que dois rapazes estavam discutindo política e havia um terceiro com eles que não dizia nada. Em determinado momento, o rapaz quieto foi questionado pelos outros dois. Não ouvi bem qual foi a pergunta. Mas a resposta não agradou nenhum dos dois. Ou seja, os dois adversários na discussão concordavam numa coisa.

- Isentão! - disse um deles ao terceiro rapaz.

Numa democracia polarizada, militantes que são adversários entre si podem acabar se unindo para fustigar o “isentão”, aquele eleitor que não se identifica com as duas maiores forças políticas de um determinado país. 

O adjetivo “isentão” é irônico. E é isso que o torna o maior paradoxo do nosso tempo. Explico: além de não ser isento, o “isentão” consegue a proeza de estar nos dois lados da polarização ao mesmo tempo. Já que o “isentão” não seria neutro, apenas fingiria ser, ele só pode estar do lado do inimigo.

Isso é comum na internet. Por exemplo, o “isentão” nas redes sociais consegue ser acusado de comunismo e de ser agente do imperialismo americano simultaneamente. Assim como o jornalismo profissional se torna um dos alvos preferenciais dos caçadores de “isentões”. O jornalista precisa manter equidistância dos agentes políticos. É um princípio ético básico. Porém, isso é mais do que o suficiente para que seja atacado pelos sectários. Os jornais da “grande imprensa” se disfarçariam de “isentões” para ocultar suas preferências políticas: a Folha de S. Paulo seria a “Foice de S. Paulo” ou um jornal a serviço do neoliberalismo; o Estadão é “Esquerdão” ou “porta-voz do golpismo de direita”, entre outros exemplos. As publicações verdadeiramente “imparciais” e “isentas” seriam os panfletos que confirmam as convicções das claques.

Outro dia, propus a um amigo que criássemos o “Calendário do Isentão”. Ele achou que fosse piada.

- Essa foi boa. - ele disse.

- Não, eu estou falando sério. - respondi.

- Sério? Calendário do Isentão?

- Sim. Quando eu não falei sério?

- Várias vezes. Às vezes, não sei se você brinca ou fala sério.

- Desta vez é sério.

Sugeri que deixássemos claro nas redes sociais quais os dias em que determinado rótulo é adequado. Por exemplo: “me chame de comunista só nas segundas-feiras; nas terças, eu sou capacho do imperialismo americano etc.”

- Viu? Você nunca fala sério. - disse meu amigo.

Brincadeiras à parte, há algo de tenebroso em tudo isso. Acredito que as tiranias odeiam mais os “isentões” do que os seus inimigos declarados. Na escala do ódio ditatorial, o isentão só não é mais detestado que os apóstatas. Há mentes que não acreditam na existência de pessoas independentes. Para elas, a seguinte frase é quase uma lei da natureza: “quem está em cima do muro sempre cai do outro lado”. Ou seja, o “isentão” é sempre do mal. Mas seria um mal ainda pior, pois seria um inimigo, um ser traiçoeiro sob um disfarce.

Agora me deixe terminar o relato do cinema. Percebi que o terceiro rapaz, que seria um “isentão”, foi praticamente deixado no vácuo pelos outros dois que ainda discutiam obstinadamente. Depois, parei de prestar atenção, pois estava decidindo com minha namorada qual dos dois filmes que sobraram (descartamos os demais que estavam em cartaz) iríamos assistir. 

- Nenhum dos dois. Vamos para a praça de alimentação.

- Isentão. - ela disse, em tom de brincadeira.

Quer dizer, eu espero que tenha sido mesmo de brincadeira!

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Loteria em Salvador

“Eu amo a rua”, escreveu João do Rio. Se ele precisasse andar diariamente em ruas de Cosme de Farias, bairro de Salvador, tenho certeza que ele nunca escreveria isso. 

Uma conhecida aproveitou minha ida ao mercado para pedir que eu passasse na Casa Lotérica e fizesse uma aposta (com o dinheiro dela) na Mega-Sena. No caminho para o mercado e Lotérica, eu preciso passar por uma rua no bairro citado. Não sei quem foi o gênio que projetou aquela rua. As calçadas são mais estreitas que o normal. Ele, o urbanista, não pensou na coleta de lixo. Resultado: sacos de lixo se acumulam nas calçadas, impondo ao pedestre um dilema cruel: ou passar por dentro da imundície ou ir pela pista, onde passa carros e ônibus, e correr o risco de ser atropelado.

Quando chove, esse impasse, que o andante precisar enfrentar, deixa de existir. Todavia, o raro leitor não pense que isso é boa notícia: o dilema some porque a água da chuva espalha o lixo pela pista. Seja andando na calçada ou na via, temos que passar por cima do lixo. 

Sempre me lembro da definição de “flanear”, citada em uma famosa crônica de João do Rio: “perambular com inteligência”. Eu me pergunto se os flanêurs de outrora eram menos habilidosos que os de hoje. Alguém pode objetar que os desafios impostos pelas ruas de cem anos atrás eram mais complicados, pois a urbanização não era tão sofisticada quanto hoje: nos dias atuais, a vida do pedestre está melhor. Faz algum sentido. Foi o próprio João do Rio quem disse, em outro texto: “hoje é melhor do que ontem e pior do que amanhã”. Mas a urbanização de hoje possui problemas que exigem uma habilidade singular dos pedestres. 

Consigo chegar ao fim da rua. Sobrevivi. Porém, há outro desafio: as filas intermináveis da Casa Lotérica. Era um período em que pessoas costumavam pagar as contas do fim do mês. Até a fila reservada para apostar na Mega-Sena estava grande. Relembrei do conto “A Loteria em Babilônia”, de Jorge Luis Borges: na história, as loterias, em que os vencedores ganhavam moeda de prata, foram um fracasso. Não sei (ninguém sabe, na verdade) quem foi que as criou. Porém, se ele estivesse estabelecido suas criações aqui em Salvador (ou no resto do Brasil), e não na Babilônia, seria um sucesso. As pessoas daqui gostam de jogar. É a esperança de ficar milionário da noite para o dia. Aliás, o fracasso dessas loterias no conto de Borges estava relacionado ao fato de elas se dirigirem unicamente à esperança, e não “a todas as faculdades do homem”. 

A fila anda devagarzinho. Atrás de mim, uma conversa edificante. Dois caras discutem métodos de depilação do traseiro. Estavam conversando em tom de brincadeira. Na minha frente, uma moça reclama da lentidão e olha para o relógio a cada cinco minutos:

- Desse jeito vou perder o almoço. - ela disse. Nunca é uma boa ideia ir para uma fila de lotérica na hora do almoço. Estávamos há uns vinte minutos na fila. Ela chegou um pouquinho antes de mim. Um homem à frente dela começou a explicar que a lentidão sempre acontece:

- Se você tem que ir ao médico logo depois de sair daqui, esqueça. Melhor você ir à clínica primeiro. Ou vai perder o seu compromisso. 

Depois de 35 minutos, chegou a minha vez. Paguei as apostas da senhora e voltei para casa. No caminho, a rua. Não sei por quê, mas a volta parece ser mais longa do que a ida. Parece que os meus anseios, para chegar em casa logo, me fazem ter essa impressão. 

Sobrevivi à rua e entreguei os comprovantes para a conhecida. Chego em casa. Deito na cama. Então, lembrei que tinha que almoçar. Só que não tem comida pronta, eu ia sair para comprar… 

Esqueci de ir ao mercado!

Vou ter que passar pela rua de novo.

Visita Surpresa

Certo dia, um vizinho veio me contar que um amigo dele havia morrido. Isso causou um choque em mim e em outros amigos em comum. Todo mundo v...