domingo, 28 de abril de 2024

Stalkers

Terminei de assistir a estarrecedora minissérie de sete episódios, na Netflix, intitulada “Bebê Rena”. Baseada em fatos reais, conta a história de Donny Dunn (interpretado pelo ator Richard Gadd, também criador do programa), um comediante fracassado que passa a ser implacavelmente perseguido pela ex-advogada Martha Scott.

Difícil não se comover com Donny. O cara só se ferra na série. Ele já havia sido vítima de estupro e abuso sexual em eventos ocorridos antes dos acontecimentos envolvendo Martha. Como a minissérie é autobiográfica, meu sentimento de comiseração foi ainda maior. 

Aterrador foi assistir que a desgraça, que veio como uma avalanche na vida de Donny, foi desencadeada por um simples ato de gentileza. O comediante dá uma xícara de chá “por conta da casa” para Martha, quando ela aparece pela primeira vez no pub onde ele trabalhava, em Londres, no ano de 2015.

A partir disso, Martha aparece regularmente no estabelecimento e começa a flertar abertamente através do uso de apelidos “carinhosos”, como “Bebê Rena” (o que explica o nome da série), entre outras coisas. A situação só piora daí em diante. Mas não vou entrar mais detalhes. Chega de spoiler.

O que me deixou intrigado e perplexo, repito, foi como o ato gentil serviu de gatilho para o desastre. Isso mostra como pode ser perigoso praticar gentileza com desconhecidos. Não se trata aqui de defender a tese esdrúxula de que temos que absolutamente evitar sermos gentis para “prevenir”. 

Até porque o stalker (adjetivo que caracteriza perseguidores obcecados por outra pessoa), muitas vezes, não precisa de uma “abertura” gentil de seu alvo, para emplacar sua perseguição obstinada e nociva.

Nunca fui vítima de stalker. Porém, escutei histórias escabrosas que corroboram a tese exposta no parágrafo anterior.

Por exemplo, na faculdade de Jornalismo onde estudei, na graduação, uma amiga me contou que um colega de sala estava perseguido uma jovem da mesma turma. 

- Ele me mandou um áudio em que ele chora e diz coisas com raiva. - ela me disse. 

- Porque ela rejeitou ele? - perguntei.

- Sim. - ela me respondeu.

Ela me fez escutar o áudio. O que ouvi foi um misto de tristeza e ódio expressos por um rapaz aflito. Entre os lamentos, ele demostrava raiva porque a mulher teria dito a ele que tinha namorado, quando na verdade não tinha. No entanto,  o que ele disse, logo após xingá-la das coisas mais repugnantes possíveis, me deixou em alerta: “ela não tem namorado p… nenhuma! Eu investiguei ela por cinco meses! Cinco meses!”.

O rapaz começou sendo um stalker online. Durante cinco meses vasculhou as redes sociais da mulher por quem ele estava apaixonado. Ao concluir que ela supostamente não tinha namorado, tentou se aproximar dela, foi rejeitado e então se tornou um stalker ainda pior e passou a persegui-la na faculdade. 

Não sei exatamente qual foi o desfecho da história. Posteriormente, eu comecei a conversar com a vítima da perseguição, mas nunca quis questioná-la a respeito desse triste evento em sua vida. Porém, como ela parecia muito bem e feliz, como ninguém comentou mais nada e como o rapaz parecia ter “voltado ao normal”, pude concluir que tudo acabou bem.

Entretanto, foi um evento assustador até para quem estava de fora, como eu. O medo da tragédia provém da imprevisibilidade da situação. Como vimos em “Bebê Rena”, Martha Scott se tornava mais perigosa e violenta à medida que se tornava mais imprevísivel. Portanto, não se sabe como a situação acabaria se o rapaz ficasse mais instável.

Mas não vamos cair na demonização rasa. Fiquei comovido com o protagonista de Bebê Rena. Todavia, foi difícil não sentir um pouco de empatia com Martha. Ela era advogada, o que significa que em algum momento da sua vida ela era mentalmente estável a ponto de possuir alta educação. Algum evento (ou eventos, no plural) provocou-lhe um colapso mental. O que seria? 

Assim como senti empatia pelo meu colega na faculdade. Não faço ideia de quais fatores estariam por trás de sua transformação em um stalker, apenas sei que esses fatores existem.

De qualquer maneira, o mundo está perigoso até para quem oferece um chá gratuito ou para quem rejeita um pretendente amoroso.

sábado, 27 de abril de 2024

O colo do capeta

Segundo o noticiário, um homem assassinou um casal de seguranças em uma loja de conveniência no Paraná. Em áudios enviados pelo Whatsapp, ele diz que “mandou os dois para o inferno” e que as vítimas agora estão no “colo do capeta”. 

O “colo do capeta” não é meramente o colo do capeta, também seria um lugar metafísico; em tese, estaria localizado nas profundezas do inferno. Não há uma regra objetiva que determine quais os critérios podem levar alguém até lá. É conclusão fundamentada na subjetividade. Se você tem um inimigo e ele morre ou é assassinado, você pode concluir que ele está no colo do diabo. Na guerra da Ucrânia, soldados vão para o colo do capeta diariamente. 

No entanto, muitas vezes, nem precisa ser seu inimigo. Basta você detestar a pessoa e ela, se falecer, vai ter esse destino cruel. De acordo com um velho manuscrito beneditino (peguei isso do mestre Machado de Assis), o Diabo procurou Deus para reclamar que muita gente, todos os dias, estava caindo em seu colo. 

- O que queres, capeta?

- Preciso de um colo maior.

- Quê?

- Todo dia cai gente no meu colo. Preciso que você expanda meu colo. Logo não vai ter mais espaço.

Dizem os exegetas que Deus recusou o pedido, a princípio. Mas o capeta o perturbou tanto que Ele acabou cedendo. Teólogos debatem como foi que o Diabo teve êxito nisso. Os mais ortodoxos afirmam que o Diabo inventou a empresa de telemarketing, que começou a ligar para o celular de Deus o dia inteiro. Como um dia para o Criador equivale a mil anos, o raro leitor pode imaginar o quão isso foi estressante…

Os teólogos heterodoxos dizem que o Diabo infestou as ruas celestiais com entregadores de folhetos com anúncios. Deus não conseguia andar alguns centímetros sem ter que pegar um folheto e acabou chegando com milhares deles em casa.

- Isso aqui está pior do que Salvador! - teria dito o Senhor. 

De qualquer modo, o Diabo conseguiu convencê-lo. Na verdade, conseguiu até mais do que queria. Deus fez com que seu colo se tornasse infinito. Agora cabe todo mundo. Tornou-se um espaço metafísico autônomo. É um local pós-morte tão possível quanto o céu ou o inferno. É por isso que o assassino erra quando coloca “colo do capeta” e “inferno” como se fossem sinônimos. Não são.

Mas como seria exatamente esse local?

Não há evidências de que alguém tenha ido e voltado do colo do capeta. Nas igrejas, no entanto, proliferam testemunhos -  gênero ficcional criado pelo neopentecostalismo - em que convertidos contam que foram até lá e voltaram. 

Um deles diz que o colo do capeta se assemelha a uma rua onde o lixo doméstico ocupa toda a calçada, que é estreita. Depois de ele ter dito isso, um fiel levantou a mão e pediu a palavra para fazer uma observação:

- Curioso. Essa rua que você descreve é idêntica à do bairro onde moro, Cosme de Farias!

Coincidência? Ou será que o colo do capeta contratou o mesmo urbanista de Salvador?

Outro testemunho disse que no colo do capeta só se fala de Taylor Swift nos jornais. Nesse caso, eu questiono: o que o colo do capeta oferece de novo? Ora, a taylormania também acontece por aqui. Nesse caso, o clichê é verdadeiro: “o inferno é aqui”. Ou melhor dizendo: o colo do capeta é aqui.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Visita Surpresa

Certo dia, um vizinho veio me contar que um amigo dele havia morrido. Isso causou um choque em mim e em outros amigos em comum. Todo mundo vai morrer, isso a gente sabe. No entanto, está subentendido na sociedade que há idades “apropriadas” para se morrer; ademais, não espera-se que uma pessoa que estava malhando no dia anterior (!) morra de forma repentina. O horror provém dessas crenças. O homem que morreu era jovem e esbanjava uma suposta saúde. 

Ele estava tomando café numa lanchonete. Os outros clientes só ouviram o barulho da queda. O cara morreu “do nada”. Caiu da cadeira, chegou ao chão já morto. Nem adiantaria chamar a ambulância. O acontecimento levou a reflexões sobre a fragilidade da vida.

- O cara estava bom ontem! Como ele pode ter morrido? - comentei isso com meu pai.

- A vida é assim! - respondeu meu pai. - Você está bom numa hora e de repente…

A situação é pior em bairros violentos e com infraestrutura de baixa qualidade. Suspeito que as “mortes repentinas” sejam mais prováveis em regiões mais pobres. Em locais assim, a causa mortis não vem somente de um vírus, de um ataque cardíaco (que matou o amigo do meu vizinho), de um derrame ou coisa parecida. A pessoa pode ser vítima da barbárie. Exemplos não faltam.

Lembro que eu e meus amigos assistíamos (involuntariamente) um rapaz agredir sua namorada enquanto ambos subiam as escadarias da rua onde morávamos. Era perturbador. Ele não apenas batia como também a agredia verbalmente. Esse “espetáculo” da desgraça alheia (olhares surgiam das janelas) ocorria toda sexta-feira. Como se sabe, é o dia do “sextou”, o que implica em bebedeira e consequente violência. 

Até que chegou uma sexta-feira e não vimos o casal.

Mais outra sexta. E nada.

Mais outra…

Não vimos mais. Depois nos contaram que esse cara foi assassinado. 

- No dia anterior, ele havia ido à igreja e tinha aceitado Jesus. - me contou uma senhora. - Ele estava tão bem e feliz! No outro dia, mataram ele.

Eu e meus amigos ficamos especulando e suspeitávamos da namorada vítima de violência doméstica.

Outro exemplo: um rapaz correu atrás de outro com a intenção de agredi-lo. O alvo foi mais rápido e conseguiu escapar subindo uma das escadarias do bairro. O evento atraiu olhares, o que irritou o agressor em potencial.

- Vocês deveriam ir lavar uma roupa em vez de ficar vendo a vida dos outros! - ele disse.

No outro dia, ele foi assassinado em frente a uma farmácia.

Eu eu meus amigos, de novo, ficamos especulando.

- Tenho certeza que aquela velha ficou furiosa por ter sido acusada de “ver a vida dos outros”. Acho que foi ela quem mandou matar! - me disse um amigo.

Tempos depois, o alvo da agressão também foi assassinado!

Especulações e teorias à parte, me espanta como a vida pode ser frágil como um ovo. Todos os três mortos citados nesta crônica eram jovens. Em “Na Hora do Almoço”, Belchior alerta: “Deixemos de coisas, cuidemos da vida/Senão chega a morte ou coisa parecida/E nos arrasta moço sem ter visto a vida”. No Brasil, todos os dias a morte arrasta pessoas jovens.

E também me espanta o fato de não haver muita gente se desesperando por saber que a vida pode acabar a qualquer momento. Os psicólogos chamam isso de “Tolerância à Incerteza”. Parece-me que vivemos como se fôssemos imortais. 

terça-feira, 2 de abril de 2024

O Lapso

Se fosse possível, logo após a aula do Mestrado, eu iria correndo para o consultório do Dr. Jeremias Halma. 

“Quem?”, deve estar se perguntando o raro leitor. Ou pode ser que não. Há um grupo restrito que pode conhecê-lo. Mas antes de informar os desavisados, melhor contar a razão do meu desejo de ir me consultar com esse médico.

No intervalo da mesma aula, uma colega se aproximou de mim. Comentou sobre o que tínhamos acabado de ver. Mudei de assunto meio sem querer.

- Sabe que a aula de quinta-feira vai ser em outra sala, né?

- Sei. 

- Você não veio na quinta passada, então pensei que pudesse estar por fora.

- O professor fez chamada?

- Fez.

- E você está aprendendo o assunto da aula dele?

Em tese, sim, eu estou aprendendo. Todos os dias eu leio sobre esse assunto. Há muitas coisas que aprendi.  Todavia, a colega me pegou desprevenido mesmo assim. Me pediu a definição do termo que dá nome ao assunto em questão.

- É… tipo… é uma corrente filosófica que… explica a….- respondi. Ou melhor, tentei responder.

Em outras palavras, me enrolei ridiculamente. Um assunto que eu pensei que estava dominando. Veio a colega e destroçou minhas ilusões com uma pergunta básica. 

Durante a aula, fiquei refletindo sobre o assunto. E acabei elaborando, para mim mesmo, uma definição correta para o termo que ela me questionou. Eu só precisava refletir um pouco para dar uma boa resposta, mas por que isso não aconteceu na hora?

Penso que tive um lapso no momento em que tentava explicar para a colega. Foi essa conclusão que me levou a lembrar do Dr. Jeremias Halma.

O médico é uma criação do grande escritor Machado de Assis. Ele aparece no conto intitulado “O Lapso”, publicado no livro “Histórias sem Data” (1884). Uma breve sinopse: um homem chamado Tomé Gonçalves - que era “exato em todas as coisas, pontual nas obrigações, severo e até meticuloso” - havia perdido a “noção de pagar”, segundo o diagnóstico do Dr. Jeremias, o que implicava em calotes. Mas o paciente não fazia isso de propósito. “Esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se-lhe da cabeça”. 

Em comparação, é possível que o meu suposto lapso seja distinto. Talvez o conceito de qualquer assunto seja varrido da minha cabeça bem na hora que eu precise explicar a alguém. Se for isso, estou ferrado. A carreira acadêmica exige apresentação de seminários e a capacidade de explicar assuntos de forma lógica e coerente. 

- A moléstia não é incurável. - me diria o Dr. Jeremias, como disse aos credores de Gonçalves. 

Ele, segundo a ficção machadiana, já havia curado um barbeiro, “que perdera a noção de espaço”, e uma “senhora na Catalunha”, “que perdera a noção do marido”.  O próximo paciente deveria ser eu, que perco a noção de qualquer assunto quando estou prestes a dissertar sobre ele para qualquer pessoa. 

- A cura está na própria faculdade. - me explicaria o Dr. Jeremias.

Ele curou Tomé Gonçalves depois de levá-lo para assistir a compra e venda de mercadorias e para ver a ação de pagar, entre outras coisas. A minha cura seria assistir com mais frequência outros alunos explicando sobre qualquer tema. 

Na quinta-feira, a colega não apareceu para a aula de novo. Quando a questionei, ela disse que tinha perdido a noção de sala de aula. 

Acusação injusta na televisão

Era noite, meu vizinho começou a receber sucessivas mensagens em seu Whatsapp. Ao lê-las, foi tomado pelo susto. Soube que seu rosto aparece...