sábado, 8 de julho de 2017

Na avenida de Nice


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Volto da apuração de um jogo do campeonato francês. Depois de bater o texto, desço pelas escadarias e encontro Babouri sentado e cabisbaixo.

- Vou sentir falta daqui. - disse ele.

Eu o questiono e ele fica calado por uns três minutos. Depois enfim fala.

- Sabia que os árabes adoraram uma boa literatura? - ele perguntou.

Babouri sempre foi quieto. Ficava no canto da redação, não socializava muito. As mãos dele têm cicatrizes de queimaduras. Isso assustava um pouco os colegas. Também deixava o Alcorão sobre sua mesa. Hoje o livro sagrado dos muçulmanos está em suas mãos, junto com outros pertences.

- Disseram que o jornal passará por uma reformulação. - ele disse.

Para acalmá-lo, convido-o para levá-lo até em casa de carro. Queria afastá-lo daquele prédio. As ruas de Nice podem ser agradáveis, até certo ponto.

Ele hesita e parece que vai recusar. No entanto, aceita.

- Vamos, mas no caminho você vai me pagar um café. - disse ele, e não sei se ele fala sério ou se brinca.

Dentro do carro, Babouri fica calado. Sua residência está há alguns quarteirões. Mais ou menos há 20 minutos de distância do prédio do jornal. No caminho, o lembro das reportagens que fizemos juntos.

- O atentado ao Charlie Hebdo me comoveu. - disse ele. - Não tinha nenhuma simpatia por esse semanário, mas aquilo foi horrível.

- Ficamos com essa pauta do Charlie. Mas o estranho foi o editor ter te escolhido de imediato. - afirmei.

- Eu estava com outra pauta. Ele me obrigou a mudar. Disse que era importante.

Nesse momento, nos aproximamos da Pormenade des Anglais. É uma avenida de 7 km que fica à beira da costa Baie des Anges. A vista é linda. Chama atenção as cadeiras azuis, colocadas para que o indivíduo possa apreciar o mar.

Todo dia 7 de julho, dia da Bastilha, sempre por volta das 22 horas, uma multidão se reúne nessa avenida. Babouri demonstra frieza, mas eu não aguento ver mulheres, mães, chorando diante de um espaço reservado para colocar flores. E não há só mães, como também há pais, tios, avós.

- Eu não consegui fazer essa pauta. Eu fui hostilizado por umas duas testemunhas. Não quiseram dar informações. Já faz mais de dois anos, mas parece que foi ontem. - disse Babouri.

- Outra do editor? - pergunto.

- Sim. Ele não vale nada.

Chegamos no edifício onde Babouri mora. O acompanho até a entrada. Algumas pessoas nos olham da janela, como se algo anormal estivesse acontecendo. O segurança revista Babouri.

- Obrigado pela companhia. Pena que talvez não nos encontremos mais. - disse ele.

- Você vai sair da cidade? - pergunto.

- Do país. - ele responde.

Nem pergunto o porquê. Talvez a resposta seja bastante óbvia.

Acho que não verei mais esse rapaz. Eu me despeço e vou embora. Na volta, passo de novo pela avenida. Dessa vez, desço do carro e me junto à multidão. Agora não dá para segurar as lágrimas. Eu não estou aqui para reportar o sofrimento dessas pessoas, mas para compartilhar com elas a minha dor e saudade.



Publicado no Recanto das Letras em 12/05/2017

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