quarta-feira, 1 de maio de 2024

Acusação injusta na televisão

Era noite, meu vizinho começou a receber sucessivas mensagens em seu Whatsapp. Ao lê-las, foi tomado pelo susto. Soube que seu rosto apareceu em um telejornal. Uma emissora colocou a sua foto e o rotulou como “acusado de estupro”. Graças a isso, uma situação kafkiana acabava de irromper na sua rotina tranquila. A acusação era absurda; do seu ponto de vista, e de seus amigos, ela escapava a qualquer lógica ou racionalidade. 

O medo veio junto com a perplexidade, pois todo mundo sabe como há “justiceiros” por todo canto, sequiosos para praticar linchamento contra “bandidos”. A sociedade odeia estupradores - esse tipo de crime não é tolerado nem entre bandidos, como traficantes e ladrões. Sua face na TV junto com a acusação de um crime grave poderia acabar decretando a sentença da sua morte. Seria como se a emissora colocasse um alvo na sua testa.

Amigos e conhecidos começaram se mobilizar para salvar sua vida. Fiéis de uma igreja que ele frequenta vieram ajudá-lo. Retiraram ele da sua casa e o colocaram num local seguro e desconhecido. Ficar em casa poderia lhe trazer problemas. Pessoas que moravam próximo poderiam reconhecê-lo: 

- Já vi esse homem aqui no bairro! - alguém poderia dizer.

- Ele mora na rua de cima! - outro poderia afirmar. 

Uma turba enfurecida poderia surgir a qualquer momento para trucidar o “estuprador”. Ficar em casa significaria estar à espera dos carrascos. Era melhor sumir. 

Fiquei sabendo do calvário do meu vizinho. Várias vezes olhei a casa dele pela minha janela, sempre temendo que se formasse uma multidão em frente a ela. Mesmo que ele não estivesse em casa, os sedentos por sangue - que usam da “justiça” como pretexto para praticar a barbárie - ficariam contentes com a destruição da moradia dele. 

Ainda bem que não aconteceu nada. Meu vizinho, no entanto, continuava aflito. 

No outro dia, ele teve que aparecer na televisão para esclarecer que não era estuprador. No telejornal da hora do almoço, em outra emissora, ele deu entrevista ao lado de seu advogado.

- Sou trabalhador, tenho família, nunca cometi nenhum crime bárbaro…

Ele estava abatido, cansado, ainda tomado pelo medo e pelo choque. A entrevista ocorreu em frente a uma delegacia da Polícia Civil, onde ele esteve, por vontade própria, antes de falar para a televisão. Àquela altura, um fato fundamental estava patente: o verdadeiro acusado por estupro já havia sido preso desde antes da foto do vizinho aparecer na transmissão local. 

O jornal da TV, para quem ele falou, colocou a foto desse suspeito: é calvo e usa óculos. Assim como o meu vizinho. A confusão foi a origem de todo o mal. Mas como a foto dele foi parar nas mãos da produção do canal de TV? E em um contexto tenebroso como esse? 

É um mistério.

À noite, uma entrevista gravada, que ele deu à mesma TV que o acusou, foi ao ar. Era uma forma de o telejornal se retratar.

- Passei a noite em claro. - disse o meu vizinho. 

Quem poderia dormir sabendo que não poderia sair à rua, pois havia o risco de ser morto por algum bandido que acreditaria estar fazendo “justiça”?

O apresentador pediu desculpas ao meu vizinho. Todavia, parece que ele não vai aceitá-las. Mais cedo ele veio aqui em casa para pedir ferramentas. Perguntei como ele estava e o que pretendia fazer.

- Vou processar a emissora. - ele disse.

- Justo.  - afirmei.

- Vai vir uma bolada. Eles quase arruinaram minha vida.

Mesmo depois da retratação, ainda me preocupo. Será que a admissão do erro consegue atingir uma plena reparação? O jornalista Felipe Pena já escreveu que “no jornalismo [ou suposto jornalismo], não há fibrose. O tecido atingido pela calúnia não se regenera”. Não seria absurdo continuar temendo pela segurança do meu vizinho. Por aí, ainda há pessoas que viram a acusação, mas não viram a emissora se retratar. 

domingo, 28 de abril de 2024

Stalkers

Terminei de assistir a estarrecedora minissérie de sete episódios, na Netflix, intitulada “Bebê Rena”. Baseada em fatos reais, conta a história de Donny Dunn (interpretado pelo ator Richard Gadd, também criador do programa), um comediante fracassado que passa a ser implacavelmente perseguido pela ex-advogada Martha Scott.

Difícil não se comover com Donny. O cara só se ferra na série. Ele já havia sido vítima de estupro e abuso sexual em eventos ocorridos antes dos acontecimentos envolvendo Martha. Como a minissérie é autobiográfica, meu sentimento de comiseração foi ainda maior. 

Aterrador foi assistir que a desgraça, que veio como uma avalanche na vida de Donny, foi desencadeada por um simples ato de gentileza. O comediante dá uma xícara de chá “por conta da casa” para Martha, quando ela aparece pela primeira vez no pub onde ele trabalhava, em Londres, no ano de 2015.

A partir disso, Martha aparece regularmente no estabelecimento e começa a flertar abertamente através do uso de apelidos “carinhosos”, como “Bebê Rena” (o que explica o nome da série), entre outras coisas. A situação só piora daí em diante. Mas não vou entrar mais detalhes. Chega de spoiler.

O que me deixou intrigado e perplexo, repito, foi como o ato gentil serviu de gatilho para o desastre. Isso mostra como pode ser perigoso praticar gentileza com desconhecidos. Não se trata aqui de defender a tese esdrúxula de que temos que absolutamente evitar sermos gentis para “prevenir”. 

Até porque o stalker (adjetivo que caracteriza perseguidores obcecados por outra pessoa), muitas vezes, não precisa de uma “abertura” gentil de seu alvo, para emplacar sua perseguição obstinada e nociva.

Nunca fui vítima de stalker. Porém, escutei histórias escabrosas que corroboram a tese exposta no parágrafo anterior.

Por exemplo, na faculdade de Jornalismo onde estudei, na graduação, uma amiga me contou que um colega de sala estava perseguido uma jovem da mesma turma. 

- Ele me mandou um áudio em que ele chora e diz coisas com raiva. - ela me disse. 

- Porque ela rejeitou ele? - perguntei.

- Sim. - ela me respondeu.

Ela me fez escutar o áudio. O que ouvi foi um misto de tristeza e ódio expressos por um rapaz aflito. Entre os lamentos, ele demostrava raiva porque a mulher teria dito a ele que tinha namorado, quando na verdade não tinha. No entanto,  o que ele disse, logo após xingá-la das coisas mais repugnantes possíveis, me deixou em alerta: “ela não tem namorado p… nenhuma! Eu investiguei ela por cinco meses! Cinco meses!”.

O rapaz começou sendo um stalker online. Durante cinco meses vasculhou as redes sociais da mulher por quem ele estava apaixonado. Ao concluir que ela supostamente não tinha namorado, tentou se aproximar dela, foi rejeitado e então se tornou um stalker ainda pior e passou a persegui-la na faculdade. 

Não sei exatamente qual foi o desfecho da história. Posteriormente, eu comecei a conversar com a vítima da perseguição, mas nunca quis questioná-la a respeito desse triste evento em sua vida. Porém, como ela parecia muito bem e feliz, como ninguém comentou mais nada e como o rapaz parecia ter “voltado ao normal”, pude concluir que tudo acabou bem.

Entretanto, foi um evento assustador até para quem estava de fora, como eu. O medo da tragédia provém da imprevisibilidade da situação. Como vimos em “Bebê Rena”, Martha Scott se tornava mais perigosa e violenta à medida que se tornava mais imprevísivel. Portanto, não se sabe como a situação acabaria se o rapaz ficasse mais instável.

Mas não vamos cair na demonização rasa. Fiquei comovido com o protagonista de Bebê Rena. Todavia, foi difícil não sentir um pouco de empatia com Martha. Ela era advogada, o que significa que em algum momento da sua vida ela era mentalmente estável a ponto de possuir alta educação. Algum evento (ou eventos, no plural) provocou-lhe um colapso mental. O que seria? 

Assim como senti empatia pelo meu colega na faculdade. Não faço ideia de quais fatores estariam por trás de sua transformação em um stalker, apenas sei que esses fatores existem.

De qualquer maneira, o mundo está perigoso até para quem oferece um chá gratuito ou para quem rejeita um pretendente amoroso.

sábado, 27 de abril de 2024

O colo do capeta

Segundo o noticiário, um homem assassinou um casal de seguranças em uma loja de conveniência no Paraná. Em áudios enviados pelo Whatsapp, ele diz que “mandou os dois para o inferno” e que as vítimas agora estão no “colo do capeta”. 

O “colo do capeta” não é meramente o colo do capeta, também seria um lugar metafísico; em tese, estaria localizado nas profundezas do inferno. Não há uma regra objetiva que determine quais os critérios podem levar alguém até lá. É conclusão fundamentada na subjetividade. Se você tem um inimigo e ele morre ou é assassinado, você pode concluir que ele está no colo do diabo. Na guerra da Ucrânia, soldados vão para o colo do capeta diariamente. 

No entanto, muitas vezes, nem precisa ser seu inimigo. Basta você detestar a pessoa e ela, se falecer, vai ter esse destino cruel. De acordo com um velho manuscrito beneditino (peguei isso do mestre Machado de Assis), o Diabo procurou Deus para reclamar que muita gente, todos os dias, estava caindo em seu colo. 

- O que queres, capeta?

- Preciso de um colo maior.

- Quê?

- Todo dia cai gente no meu colo. Preciso que você expanda meu colo. Logo não vai ter mais espaço.

Dizem os exegetas que Deus recusou o pedido, a princípio. Mas o capeta o perturbou tanto que Ele acabou cedendo. Teólogos debatem como foi que o Diabo teve êxito nisso. Os mais ortodoxos afirmam que o Diabo inventou a empresa de telemarketing, que começou a ligar para o celular de Deus o dia inteiro. Como um dia para o Criador equivale a mil anos, o raro leitor pode imaginar o quão isso foi estressante…

Os teólogos heterodoxos dizem que o Diabo infestou as ruas celestiais com entregadores de folhetos com anúncios. Deus não conseguia andar alguns centímetros sem ter que pegar um folheto e acabou chegando com milhares deles em casa.

- Isso aqui está pior do que Salvador! - teria dito o Senhor. 

De qualquer modo, o Diabo conseguiu convencê-lo. Na verdade, conseguiu até mais do que queria. Deus fez com que seu colo se tornasse infinito. Agora cabe todo mundo. Tornou-se um espaço metafísico autônomo. É um local pós-morte tão possível quanto o céu ou o inferno. É por isso que o assassino erra quando coloca “colo do capeta” e “inferno” como se fossem sinônimos. Não são.

Mas como seria exatamente esse local?

Não há evidências de que alguém tenha ido e voltado do colo do capeta. Nas igrejas, no entanto, proliferam testemunhos -  gênero ficcional criado pelo neopentecostalismo - em que convertidos contam que foram até lá e voltaram. 

Um deles diz que o colo do capeta se assemelha a uma rua onde o lixo doméstico ocupa toda a calçada, que é estreita. Depois de ele ter dito isso, um fiel levantou a mão e pediu a palavra para fazer uma observação:

- Curioso. Essa rua que você descreve é idêntica à do bairro onde moro, Cosme de Farias!

Coincidência? Ou será que o colo do capeta contratou o mesmo urbanista de Salvador?

Outro testemunho disse que no colo do capeta só se fala de Taylor Swift nos jornais. Nesse caso, eu questiono: o que o colo do capeta oferece de novo? Ora, a taylormania também acontece por aqui. Nesse caso, o clichê é verdadeiro: “o inferno é aqui”. Ou melhor dizendo: o colo do capeta é aqui.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

Visita Surpresa

Certo dia, um vizinho veio me contar que um amigo dele havia morrido. Isso causou um choque em mim e em outros amigos em comum. Todo mundo vai morrer, isso a gente sabe. No entanto, está subentendido na sociedade que há idades “apropriadas” para se morrer; ademais, não espera-se que uma pessoa que estava malhando no dia anterior (!) morra de forma repentina. O horror provém dessas crenças. O homem que morreu era jovem e esbanjava uma suposta saúde. 

Ele estava tomando café numa lanchonete. Os outros clientes só ouviram o barulho da queda. O cara morreu “do nada”. Caiu da cadeira, chegou ao chão já morto. Nem adiantaria chamar a ambulância. O acontecimento levou a reflexões sobre a fragilidade da vida.

- O cara estava bom ontem! Como ele pode ter morrido? - comentei isso com meu pai.

- A vida é assim! - respondeu meu pai. - Você está bom numa hora e de repente…

A situação é pior em bairros violentos e com infraestrutura de baixa qualidade. Suspeito que as “mortes repentinas” sejam mais prováveis em regiões mais pobres. Em locais assim, a causa mortis não vem somente de um vírus, de um ataque cardíaco (que matou o amigo do meu vizinho), de um derrame ou coisa parecida. A pessoa pode ser vítima da barbárie. Exemplos não faltam.

Lembro que eu e meus amigos assistíamos (involuntariamente) um rapaz agredir sua namorada enquanto ambos subiam as escadarias da rua onde morávamos. Era perturbador. Ele não apenas batia como também a agredia verbalmente. Esse “espetáculo” da desgraça alheia (olhares surgiam das janelas) ocorria toda sexta-feira. Como se sabe, é o dia do “sextou”, o que implica em bebedeira e consequente violência. 

Até que chegou uma sexta-feira e não vimos o casal.

Mais outra sexta. E nada.

Mais outra…

Não vimos mais. Depois nos contaram que esse cara foi assassinado. 

- No dia anterior, ele havia ido à igreja e tinha aceitado Jesus. - me contou uma senhora. - Ele estava tão bem e feliz! No outro dia, mataram ele.

Eu e meus amigos ficamos especulando e suspeitávamos da namorada vítima de violência doméstica.

Outro exemplo: um rapaz correu atrás de outro com a intenção de agredi-lo. O alvo foi mais rápido e conseguiu escapar subindo uma das escadarias do bairro. O evento atraiu olhares, o que irritou o agressor em potencial.

- Vocês deveriam ir lavar uma roupa em vez de ficar vendo a vida dos outros! - ele disse.

No outro dia, ele foi assassinado em frente a uma farmácia.

Eu eu meus amigos, de novo, ficamos especulando.

- Tenho certeza que aquela velha ficou furiosa por ter sido acusada de “ver a vida dos outros”. Acho que foi ela quem mandou matar! - me disse um amigo.

Tempos depois, o alvo da agressão também foi assassinado!

Especulações e teorias à parte, me espanta como a vida pode ser frágil como um ovo. Todos os três mortos citados nesta crônica eram jovens. Em “Na Hora do Almoço”, Belchior alerta: “Deixemos de coisas, cuidemos da vida/Senão chega a morte ou coisa parecida/E nos arrasta moço sem ter visto a vida”. No Brasil, todos os dias a morte arrasta pessoas jovens.

E também me espanta o fato de não haver muita gente se desesperando por saber que a vida pode acabar a qualquer momento. Os psicólogos chamam isso de “Tolerância à Incerteza”. Parece-me que vivemos como se fôssemos imortais. 

terça-feira, 2 de abril de 2024

O Lapso

Se fosse possível, logo após a aula do Mestrado, eu iria correndo para o consultório do Dr. Jeremias Halma. 

“Quem?”, deve estar se perguntando o raro leitor. Ou pode ser que não. Há um grupo restrito que pode conhecê-lo. Mas antes de informar os desavisados, melhor contar a razão do meu desejo de ir me consultar com esse médico.

No intervalo da mesma aula, uma colega se aproximou de mim. Comentou sobre o que tínhamos acabado de ver. Mudei de assunto meio sem querer.

- Sabe que a aula de quinta-feira vai ser em outra sala, né?

- Sei. 

- Você não veio na quinta passada, então pensei que pudesse estar por fora.

- O professor fez chamada?

- Fez.

- E você está aprendendo o assunto da aula dele?

Em tese, sim, eu estou aprendendo. Todos os dias eu leio sobre esse assunto. Há muitas coisas que aprendi.  Todavia, a colega me pegou desprevenido mesmo assim. Me pediu a definição do termo que dá nome ao assunto em questão.

- É… tipo… é uma corrente filosófica que… explica a….- respondi. Ou melhor, tentei responder.

Em outras palavras, me enrolei ridiculamente. Um assunto que eu pensei que estava dominando. Veio a colega e destroçou minhas ilusões com uma pergunta básica. 

Durante a aula, fiquei refletindo sobre o assunto. E acabei elaborando, para mim mesmo, uma definição correta para o termo que ela me questionou. Eu só precisava refletir um pouco para dar uma boa resposta, mas por que isso não aconteceu na hora?

Penso que tive um lapso no momento em que tentava explicar para a colega. Foi essa conclusão que me levou a lembrar do Dr. Jeremias Halma.

O médico é uma criação do grande escritor Machado de Assis. Ele aparece no conto intitulado “O Lapso”, publicado no livro “Histórias sem Data” (1884). Uma breve sinopse: um homem chamado Tomé Gonçalves - que era “exato em todas as coisas, pontual nas obrigações, severo e até meticuloso” - havia perdido a “noção de pagar”, segundo o diagnóstico do Dr. Jeremias, o que implicava em calotes. Mas o paciente não fazia isso de propósito. “Esta ideia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se-lhe da cabeça”. 

Em comparação, é possível que o meu suposto lapso seja distinto. Talvez o conceito de qualquer assunto seja varrido da minha cabeça bem na hora que eu precise explicar a alguém. Se for isso, estou ferrado. A carreira acadêmica exige apresentação de seminários e a capacidade de explicar assuntos de forma lógica e coerente. 

- A moléstia não é incurável. - me diria o Dr. Jeremias, como disse aos credores de Gonçalves. 

Ele, segundo a ficção machadiana, já havia curado um barbeiro, “que perdera a noção de espaço”, e uma “senhora na Catalunha”, “que perdera a noção do marido”.  O próximo paciente deveria ser eu, que perco a noção de qualquer assunto quando estou prestes a dissertar sobre ele para qualquer pessoa. 

- A cura está na própria faculdade. - me explicaria o Dr. Jeremias.

Ele curou Tomé Gonçalves depois de levá-lo para assistir a compra e venda de mercadorias e para ver a ação de pagar, entre outras coisas. A minha cura seria assistir com mais frequência outros alunos explicando sobre qualquer tema. 

Na quinta-feira, a colega não apareceu para a aula de novo. Quando a questionei, ela disse que tinha perdido a noção de sala de aula. 

sexta-feira, 1 de março de 2024

Trevisan no supermercado

Sexta-feira. Vou a um supermercado que fica em Brotas. Criei um hábito. Toda semana vou nesse estabelecimento para comprar alguma coisa: normalmente é uma garrafa de refrigerante ou macarrão instantâneo. Mas hoje vou prestar mais atenção em outras seções. É um mercado que fica um pouco distante de casa. Há outros mais próximos. No entanto, eu vou até lá só para poder fazer exercício físico no caminho. Andar é bom.
Depois de caminhar 1,3 km, chego no supermercado. No estacionamento, um carro para e duas pessoas saem: um homem e uma mulher. O homem é gordo, imenso, possui um traço imponente e é calvo. Lembra o Tony Soprano. A mulher parece ser esposa. Linda e aparentemente mais jovem que ele. Ambos entraram logo depois de mim.
O casal parou para conversar com alguém e eu fui para a seção de higiene, que fica próxima à entrada/saída do estabelecimento. Enquanto me distraía escolhendo cuidadosamente a marca do papel higiênico, uma muvuca teve início. Não era uma briga feia. Longe disso. Era um bate-boca entre o homem que parece Tony e o segurança. Não consegui entender o motivo da briga. 
- Você viu se fui eu? VOCÊ VIU? - perguntou o homem, aumentando o tom de voz.
- Se acontecer de novo, vou ter que pedir para você se retirar. - respondeu o segurança.
- Ah, é?
- Eduardo… Amor… - disse a esposa, tentando tirar o marido da discussão. Ela foi bem-sucedida nisso.
Porém, escutei o homem dizer baixinho: “ele vai ver”.
Depois de passar o olho nas prateleiras com material de limpeza, vou à parte que interessa: a seção onde fica bebidas. Olho para garrafas de vinho, de rum, de saquê, de cachaça… Dá vontade de comprar tudo. Mas não compro. Levo só o refrigerante.
Vou para a fila. Há cinco caixas. Duas são reservadas aos clientes preferenciais. E elas podem ficar, mesmo que por um momento, sem nenhum cliente. Todavia, há espertinhos (não são "preferenciais") que sempre conseguem usá-las. São os “talentosos”. Andar pelo supermercado é uma arte. Requer a combinação de cuidado, velocidade e malícia. Requer a capacidade de perceber qual caixa está mais rápido. Escolho uma fila. Depois de 10 minutos sem essa mesma fila andar, percebo que não sou capaz de notar qual atendente é a mais veloz.
Atrás de mim estão uma senhora e uma moça mais nova. Conversam e mudam de assunto rapidamente. Com a lentidão da fila, não é exagero dizer que elas poderiam falar de centenas de assuntos ali mesmo. 
Foi então que deram início a uma conversa estarrecedora. Antes que o raro leitor me acuse de "escutar o papo alheio", me defendo: do jeito que elas conversavam, impossível não ouvir. E se quisessem privacidade para um tema tão sensível, não estariam falando disso numa fila de mercado.
A senhora contou que, no interior da Bahia, um homem espancou a esposa na primeira noite que passaram juntos. O motivo: “não era moça”, segundo as palavras de quem contava o relato. Depois disso, o agressor teria entrado em depressão e estava cada vez mais violento. Até que um dia ele torturou física e psicologicamente a mulher, para que contasse quem foi o homem que a deixou “impura”. Ela contou que foi um cara que vivia frequentando um específico bar na cidade. O marido foi ao bar e esfaqueou o cara. Na região, comentava-se que talvez a vítima fosse inocente. A mulher teria dado “qualquer nome” ao marido para que ele parasse de machucá-la.
Não ouvi o resto da história. Entretanto, isso me deixou reflexivo. Parece até enredo de um conto de Dalton Trevisan. Um dos motivos que tornam Trevisan um clássico da literatura nacional é a sua capacidade de descrever fidedignamente como eram os valores da sociedade brasileira há uns 60 anos. Quem lê o autor curitibano passa a entender como eram as entranhas de relações conjugais daquele tempo. Há situações que hoje consideraríamos bárbaras, mas que eram "toleráveis" naquela época. Percebe-se também que os direitos das mulheres avançaram bastante. Mesmo assim, ainda existem "buracos da História", em que acontecem coisas como o evento ambientado no interior baiano. Durante a minha reflexão, a fila andava e estava chegando minha vez.
Vou ser atendido. No outro caixa, vejo o homem parecido com Tony Soprano e sua esposa. Ele chegou nas filas depois de mim e está sendo atendido ao mesmo tempo que eu. Ou seja, ele domina a arte de andar pelo supermercado. 
Na hora do pagamento, ele tira um bolo de dinheiro do bolso e paga. Enquanto contava o dinheiro, comecei a cogitar sobre a possibilidade de ele ser realmente um gângster. O crime organizado curte dinheiro vivo. Ou talvez ele só fosse um homem honesto que se exaltou por um momento. E pagar comprinhas no mercado com dinheiro vivo não prova que alguém é criminoso.
Duas semanas depois, soube que o segurança, que discutiu com o homem, foi encontrado morto. 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

A era do carro elétrico

É cedo para dizer que o Brasil já está na era do carro elétrico? Acredito que sim. Mencionei “a era” mais como uma homenagem. Há quase 123 anos, João do Rio decretou: “E, subitamente, é a era do Automóvel”. Ele descreveu a máquina automotiva como um “monstro” que bufa. Pois são os “peidos” dos automóveis que ajudam a degradar o ambiente. O uso do carro elétrico seria mais sustentável. O carro elétrico não peida. É um avanço.

Mas com o carro elétrico emergem adaptações necessárias. João do Rio disse também que o automóvel “tudo transformou com aparências novas e novas aspirações”. O mesmo pode ser dito, mais de cem anos depois, do carro elétrico. Leio no jornal Valor Econômico que o “Carro elétrico agita reunião no condomínio”. É a manchete ipsis litteris. O carro não peida, mas exige carregamento pela tomada. Imagine um sujeito morando em um determinado condomínio. Ele compra um carro elétrico, percebe que a bateria está acabando, pega a tomada do veículo e observa que não há entrada adequada para carregar o carro. Ele vai furioso atrás do síndico.

- O condomínio de vocês não tem entrada para eu carregar meu carro.

- Sinto muito, isso aqui foi construído antes do carro elétrico começar a existir.

- Olha eu pago essa p… Então trate de dar um jeito.

- Senhor, se acalme para que possamos pensar numa solução…

- Eu quero carregar agora! 

O morador furioso precisaria de uma tomada de 220 volts aterrada. Ele tem um carregador portátil que veio junto com o carro. Porém, serão necessárias umas 12 horas para carregar a bateria. Se quiser sair com o carro no outro dia, ele precisa da tomada e do tempo.

- Eu vou trabalhar amanhã cedo! 

- O que posso fazer?!

O síndico precisaria adaptar a garagem do prédio, mas isso não é algo que se faça da noite para o dia. Ele precisaria de consultoria antes. Portanto, ele não poderia mesmo fazer nada naquele momento.

O morador o pega pelo colarinho. Mas o raro leitor fique tranquilo. O diálogo e a ação do morador são frutos da minha imaginação. Entretanto, descrevem algo que pode se tornar mais comum na medida que carros elétricos vão sendo adquiridos e se tornando mais frequentes no Brasil. Segundo a reportagem do Valor, houve discussão que foi parar na polícia.  

João do Rio disse que o automóvel de sua época foi “o grande transformador de formas lentas”. Atualmente, as novas necessidades que vão surgindo graças ao carro elétrico implicam no surgimento de novos serviços. O jornal mencionou a existência de uma empresa que se especializou em diagnósticos para a adaptação de edifícios ao carregamento de carros elétricos. É possível que eventualmente apareçam empresas de arbitragem especializadas em buscar consensos entre moradores a respeito da configuração elétrica do condomínio. Não vamos querer que o síndico apanhe ou que os moradores quebrem o pau entre si. Também não é bom ficar incomodando a polícia com discussões sobre tomada. 

É verdade que alguns moradores tentarão encontrar suas próprias soluções. Há aqueles que vão treinar artes marciais. Prevejo que junto com o crescimento do uso de carros elétricos haverá o aumento de números de alunos nas aulas de defesa pessoal. No formulário de inscrição, se houver, para as aulas de luta terá a seguinte opção na pergunta sobre os motivos para a matrícula: "você e/ou seu vizinho possuem carro elétrico". 

João do Rio percebeu outra coisa na sua época: o automóvel impacta até a linguagem. "A reforma começa, antes de andar, na linguagem e na ortografia". Ele fala sobre diálogos "bizarros" em que as pessoas citavam siglas e palavras em inglês. Com o carro elétrico, as conversas de hoje fatalmente terão suas siglas.

- Qual o seu carro?

- Volkswagen ID. 2ALL.

- É muito bonito! Só que eu quero um BYD Dolphin.

Mas voltemos à questão da engenharia civil. Não são apenas os edifícios com apartamentos que precisarão se adaptar aos carros elétricos. Shopping centers, como diz a reportagem do Valor, já estão cogitando instalar eletropontos com o intuito de atender clientes que possuem carros elétricos. É possível que ao longo dos anos o carro elétrico se torne universal nas pistas do Brasil - ou seja, que ele acabe se tornando “o ideal de toda a gente”, nas palavras de João do Rio. Isso quer dizer que toda a cidade vai precisar se adequar. Principalmente a vizinhança em condomínios. 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Dia do Comediante

Tive, e talvez ainda tenha, vocação para a comédia. E desde a infância. Em suas palavras (escritas) de despedida, minha professora da quarta série percebeu que se tornar comediante poderia ser um caminho para mim. Não foi em tom de zombaria. O que ela disse, ipsis litteris: “você […] tem a capacidade de alegrar todos à sua volta com suas histórias e suas trapalhadas”. Eu fui uma criança impulsiva, o que me levou a ser o “palhaço da turma”. Com a maturidade da vida, notei que ser comediante era mais do que palhaçadas improvisadas na sala de aula. 

Dá muito trabalho ser um bom comediante. A comédia é uma arte performática. Além disso, não há comédia sem público. Se você cria uma piada e conta ela num local onde não há absolutamente ninguém, isso não é comédia. Precisa ter gente rindo. Ou te xingando por causa da piada ruim. Então, para ser comediante, você tem que saber falar em público. 

Mas o mais complicado é criar piadas engraçadas. O comediante possui um texto. Mais difícil ainda é criar boas piadas com o improviso. Isso exige raciocínio rápido por parte do piadista. Uma boa capacidade de relacionar coisas aparentemente sem nenhuma ligação também ajuda bastante.

Para escrever bons textos e produzir boas performances é preciso estudar.

O fato é que não sou chegado a falar em público. Não se trata de medo. Eu sou do tipo recluso, como meus mestres literários Rubem Fonseca e Thomas Pynchon. Portanto, não sirvo para contar piadas diante de uma plateia. Posso até fazer piadinhas com amigos, mas se a roda de conversa enche, eu me contenho. 

O que eu gostaria era de escrever piadas que as pessoas pudessem ler e rir em suas casas. Há definições que distinguem o comediante do humorista. O primeiro, como eu disse, trata-se de uma pessoa que faz apresentação cômica. O segundo seria mais uma atividade intelectual. O humorista escreve artigos de humor, peças de comédia, anedotas etc. Pode se dizer que a comédia está mais próxima do teatro e o humorismo se aproxima da escrita jornalística.

Entre humorista e comediante, eu prefiro o primeiro. Desculpa, querida professora.

Outra coisa que me desestimulou para a carreira da comédia é a possibilidade de ser hostilizado pelo público. Se você conta piadas sem graça, na melhor das hipóteses a plateia te vaia ou te xinga. Na pior, você pode ser agredido fisicamente.

Há uma anedota sobre um comediante fracassado que era, vejam só, alvo de piadas. Imagina o piadista ser tão ruim que ele acaba se tornando vítima de chalaças produzidas por pessoas sem graça. 

No Bar de Comédia onde ele trabalhava, aconteciam frequentes altercações provocadas por gente que estava farta de comédia de péssima qualidade. A cada dia o público diminuía. Numa noite, depois ter contado uma piada politicamente incorreta que envolvia negros e esgoto, uma pessoa da plateia, visivelmente embriagada, foi direto ao ponto:

- Todo dia é essa merda!

- Quem sabe a p… da sua mãe sobe aqui e faz melhor! - retrucou o comediante.

- P… é a sua mãe, seu racista!

A troca de palavras gentis e elogiosas entre os dois descambou para um nível de violência que ninguém tinha visto por ali até então.

Tudo isso mostra que até na vida de comediante pode haver riscos. Talvez seja uma das profissões mais perigosas do mundo. Um público irritado com uma comédia de baixa qualidade pode se tornar agressivo.

Por outro lado, se o humorista produzir texto ruins, o que pode acontecer é o recebimento de “cartas do leitor” manifestando um tom crítico e feroz. O humorista não corre tantos riscos de sofrer agressão física. A não ser que ele irrite algum leitor sociopata, que pode querer ir à casa dele para fazer alguma besteira.

No entanto, nem tudo é ruim. O humorismo e a comédia ajudam a ter uma postura estoica diante das incertezas do mundo. 

O Isentão

Estava na entrada do cinema, com minha então namorada, quando notei que dois rapazes estavam discutindo política e havia um terceiro com eles que não dizia nada. Em determinado momento, o rapaz quieto foi questionado pelos outros dois. Não ouvi bem qual foi a pergunta. Mas a resposta não agradou nenhum dos dois. Ou seja, os dois adversários na discussão concordavam numa coisa.

- Isentão! - disse um deles ao terceiro rapaz.

Numa democracia polarizada, militantes que são adversários entre si podem acabar se unindo para fustigar o “isentão”, aquele eleitor que não se identifica com as duas maiores forças políticas de um determinado país. 

O adjetivo “isentão” é irônico. E é isso que o torna o maior paradoxo do nosso tempo. Explico: além de não ser isento, o “isentão” consegue a proeza de estar nos dois lados da polarização ao mesmo tempo. Já que o “isentão” não seria neutro, apenas fingiria ser, ele só pode estar do lado do inimigo.

Isso é comum na internet. Por exemplo, o “isentão” nas redes sociais consegue ser acusado de comunismo e de ser agente do imperialismo americano simultaneamente. Assim como o jornalismo profissional se torna um dos alvos preferenciais dos caçadores de “isentões”. O jornalista precisa manter equidistância dos agentes políticos. É um princípio ético básico. Porém, isso é mais do que o suficiente para que seja atacado pelos sectários. Os jornais da “grande imprensa” se disfarçariam de “isentões” para ocultar suas preferências políticas: a Folha de S. Paulo seria a “Foice de S. Paulo” ou um jornal a serviço do neoliberalismo; o Estadão é “Esquerdão” ou “porta-voz do golpismo de direita”, entre outros exemplos. As publicações verdadeiramente “imparciais” e “isentas” seriam os panfletos que confirmam as convicções das claques.

Outro dia, propus a um amigo que criássemos o “Calendário do Isentão”. Ele achou que fosse piada.

- Essa foi boa. - ele disse.

- Não, eu estou falando sério. - respondi.

- Sério? Calendário do Isentão?

- Sim. Quando eu não falei sério?

- Várias vezes. Às vezes, não sei se você brinca ou fala sério.

- Desta vez é sério.

Sugeri que deixássemos claro nas redes sociais quais os dias em que determinado rótulo é adequado. Por exemplo: “me chame de comunista só nas segundas-feiras; nas terças, eu sou capacho do imperialismo americano etc.”

- Viu? Você nunca fala sério. - disse meu amigo.

Brincadeiras à parte, há algo de tenebroso em tudo isso. Acredito que as tiranias odeiam mais os “isentões” do que os seus inimigos declarados. Na escala do ódio ditatorial, o isentão só não é mais detestado que os apóstatas. Há mentes que não acreditam na existência de pessoas independentes. Para elas, a seguinte frase é quase uma lei da natureza: “quem está em cima do muro sempre cai do outro lado”. Ou seja, o “isentão” é sempre do mal. Mas seria um mal ainda pior, pois seria um inimigo, um ser traiçoeiro sob um disfarce.

Agora me deixe terminar o relato do cinema. Percebi que o terceiro rapaz, que seria um “isentão”, foi praticamente deixado no vácuo pelos outros dois que ainda discutiam obstinadamente. Depois, parei de prestar atenção, pois estava decidindo com minha namorada qual dos dois filmes que sobraram (descartamos os demais que estavam em cartaz) iríamos assistir. 

- Nenhum dos dois. Vamos para a praça de alimentação.

- Isentão. - ela disse, em tom de brincadeira.

Quer dizer, eu espero que tenha sido mesmo de brincadeira!

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Loteria em Salvador

“Eu amo a rua”, escreveu João do Rio. Se ele precisasse andar diariamente em ruas de Cosme de Farias, bairro de Salvador, tenho certeza que ele nunca escreveria isso. 

Uma conhecida aproveitou minha ida ao mercado para pedir que eu passasse na Casa Lotérica e fizesse uma aposta (com o dinheiro dela) na Mega-Sena. No caminho para o mercado e Lotérica, eu preciso passar por uma rua no bairro citado. Não sei quem foi o gênio que projetou aquela rua. As calçadas são mais estreitas que o normal. Ele, o urbanista, não pensou na coleta de lixo. Resultado: sacos de lixo se acumulam nas calçadas, impondo ao pedestre um dilema cruel: ou passar por dentro da imundície ou ir pela pista, onde passa carros e ônibus, e correr o risco de ser atropelado.

Quando chove, esse impasse, que o andante precisar enfrentar, deixa de existir. Todavia, o raro leitor não pense que isso é boa notícia: o dilema some porque a água da chuva espalha o lixo pela pista. Seja andando na calçada ou na via, temos que passar por cima do lixo. 

Sempre me lembro da definição de “flanear”, citada em uma famosa crônica de João do Rio: “perambular com inteligência”. Eu me pergunto se os flanêurs de outrora eram menos habilidosos que os de hoje. Alguém pode objetar que os desafios impostos pelas ruas de cem anos atrás eram mais complicados, pois a urbanização não era tão sofisticada quanto hoje: nos dias atuais, a vida do pedestre está melhor. Faz algum sentido. Foi o próprio João do Rio quem disse, em outro texto: “hoje é melhor do que ontem e pior do que amanhã”. Mas a urbanização de hoje possui problemas que exigem uma habilidade singular dos pedestres. 

Consigo chegar ao fim da rua. Sobrevivi. Porém, há outro desafio: as filas intermináveis da Casa Lotérica. Era um período em que pessoas costumavam pagar as contas do fim do mês. Até a fila reservada para apostar na Mega-Sena estava grande. Relembrei do conto “A Loteria em Babilônia”, de Jorge Luis Borges: na história, as loterias, em que os vencedores ganhavam moeda de prata, foram um fracasso. Não sei (ninguém sabe, na verdade) quem foi que as criou. Porém, se ele estivesse estabelecido suas criações aqui em Salvador (ou no resto do Brasil), e não na Babilônia, seria um sucesso. As pessoas daqui gostam de jogar. É a esperança de ficar milionário da noite para o dia. Aliás, o fracasso dessas loterias no conto de Borges estava relacionado ao fato de elas se dirigirem unicamente à esperança, e não “a todas as faculdades do homem”. 

A fila anda devagarzinho. Atrás de mim, uma conversa edificante. Dois caras discutem métodos de depilação do traseiro. Estavam conversando em tom de brincadeira. Na minha frente, uma moça reclama da lentidão e olha para o relógio a cada cinco minutos:

- Desse jeito vou perder o almoço. - ela disse. Nunca é uma boa ideia ir para uma fila de lotérica na hora do almoço. Estávamos há uns vinte minutos na fila. Ela chegou um pouquinho antes de mim. Um homem à frente dela começou a explicar que a lentidão sempre acontece:

- Se você tem que ir ao médico logo depois de sair daqui, esqueça. Melhor você ir à clínica primeiro. Ou vai perder o seu compromisso. 

Depois de 35 minutos, chegou a minha vez. Paguei as apostas da senhora e voltei para casa. No caminho, a rua. Não sei por quê, mas a volta parece ser mais longa do que a ida. Parece que os meus anseios, para chegar em casa logo, me fazem ter essa impressão. 

Sobrevivi à rua e entreguei os comprovantes para a conhecida. Chego em casa. Deito na cama. Então, lembrei que tinha que almoçar. Só que não tem comida pronta, eu ia sair para comprar… 

Esqueci de ir ao mercado!

Vou ter que passar pela rua de novo.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Que vexame, meu Deus!

Não assisti o jogo entre Cruzeiro e Sousa-PB desde o início. Estava ocupado com outras coisas. Li no X (ex-Twitter) que o primeiro tempo foi pavoroso. Bateu o desânimo. E a preocupação. Cruzeiro tem um investimento superior ao time paraibano. Mas isso não se refletia dentro do campo. 

Segundo as duas folhas salariais, o time celeste deveria vencer sem dificuldades. O problema é que isso pode ficar só na teoria. Aquele valor numérico, que representa quanto o elenco ganha, não garante nada. E há outras variáveis: por exemplo, o campo estava encharcado. Não, isso não é uma desculpa. Como diz o Eclesiastes, “tudo sucede igualmente a todos”. O campo estava ruim tanto para o Cruzeiro quanto para o próprio dono da casa. 

Torço para o Cruzeiro desde 1999. Sou baiano e cruzeirense, uma peça raríssima. Não é comum encontrar torcedores do Cruzeiro nas ruas de Salvador. Além dos maiores times locais, as pessoas gostam mais dos clubes do chamado “Eixo Rio-São Paulo”. Lembro de uma conversa que tive com um colega de escola, no ensino médio:

- Você torce para que time? - ele me perguntou.

- Cruzeiro.

- Cruzeiro!? As pessoas torcem para Flamengo, São Paulo, Corinthians… Nunca conheci outra pessoa que fosse cruzeirense.  

O jogo entre Cruzeiro e Sousa-PB, ontem, era um confronto de mata-mata. Um vitória simples do Sousa e o Cruzeirão seria eliminado. Bastava um empate para meu time avançar. O Sofascore me informa que o segundo tempo começou. O placar: 0 a 0. Como qualquer torcedor, a gente fica otimista, ainda que seja por um momento. Passa pela cabeça: “o time tem condição de vencer”. Meia hora depois: 0 a 0, ainda. A preocupação volta. Em outro cômodo, meu pai assiste a TV e muda para o canal onde está sendo transmitido o jogo. Mesmo assim resisto em ir ver. 

O até então persistente placar de 0 a 0 me fez relembrar momentos da pior fase do Cruzeiro na história: o time tinha uma dificuldade hercúlea para derrotar adversários com investimento inferior. Isso acontecia muito nos anos 2020-21, que foi o período em que o Cruzeiro esteve passando sufoco na Série B. Nesse biênio, o clube estava mais financeiramente ferrado do que hoje, tinha uma gestão pior que a atual, possuía os piores elencos já vistos em sua trajetória e sofria vexames absurdos. Foi um tempo de aflição, como canta Zé Geraldo. Alguém pode dizer que dois anos é “pouca coisa”. Para um clube grande como Cruzeiro, a angústia de dois anos é muita coisa. Parece que foi vinte, trinta anos…

Escuto o locutor gritando “gol” na TV que meu pai assiste.

- Eita, Cruzeiro! - diz meu pai.

Pronto! Estava acontecendo uma exata repetição dos vexames de três ou quatro anos atrás. 

- P… que pariu! - eu disse. Só me restou xingar. 

Fui capturado pelo pessimismo que talvez qualquer torcedor sinta quando seu time toma gol no final do jogo. “Ferrou! Está tudo perdido”, pensei. Meu pai, um carioca torcedor do Flamengo, demonstrou mais otimismo que eu:

- Ainda tem tempo, Cruzeiro.

Havia tempo. Tentei usar a razão: “pode ser que dê pra reagir”. Repito: o empate classificava o Cruzeiro, segundo as regras da competição. No entanto, o jogador Danillo Bala destruiu qualquer esperança. Fez outro gol. Só escutei meu pai dizer:

- Como toma um gol desses!?

Cruzeiro foi derrotado e eliminado na primeira fase. É o maior campeão da Copa do Brasil. Foi vencido de forma vergonhosa. Depois dos anos 2020-21, alguém pode argumentar, o torcedor cruzeirense poderia estar anestesiado para enfrentar uma situação assim. Mas a derrota de ontem foi um tipo singular de vexame. Foi algo que não se viu antes, nem mesmo nas piores fases. 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Sumiços e Emboscadas

A gente constrói uma vida em determinado bairro. Depois, por causa das ocupações e responsabilidades que vão aparecendo no decorrer do tempo (como um emprego em outro bairro), nos afastamos desse local - não me refiro necessariamente à distância física, mas sim a um afastamento emocional. Quando voltamos a ter uma aproximação afetiva, certamente vamos notar mudanças, que podem ser boas ou desagradáveis. Dia desses, notei uma mudança extremamente ruim. 

Notei que um amigo de infância chamado Gustavo, ou melhor, o “Gu Ligeirinho” - por causa da sua velocidade no futebol - tinha “sumido”. Nunca mais o tinha visto e nem conversado com ele. Pensei que ele poderia ter mudado de vida - arrumou um bom emprego e construiu família. Isso seria uma boa mudança.

Perguntei a uma senhora, que também me conhece há muito tempo.

- A senhora tem notícias de Gu Ligeirinho?

- Não soube? Mataram ele!

- O QUE!?

É isso. Meu amigo de infância foi assassinado. Mais um. Quando ela me deu a notícia, senti uma breve tontura. Comecei a suar. O cara morreu e eu não sabia. Não fui ao enterro dele, nem prestei condolências à família. 

- Quando foi isso?

- Tem dois meses!

- Por que mataram ele?!

- Não sei, meu filho. Disseram que foi envolvimento com o tráfico.

Eu senti vontade de dizer para ela: “é mentira!”. Mas eu não disse. Eu sabia que isso poderia ser verdade. Não era uma hipótese absurda. Gu era um cara do bem. No entanto, alguns amigos meus que eram boas pessoas acabaram no crime e foram mortos. Não é impossível gente se envolver no tráfico de drogas, se transformar num bandido frio e depois ser morto.

A senhora não sabia de mais detalhes. Todavia, eu estava interessado. Fui atrás de familiares. Iria tentar confortá-los e pedir desculpas por não ter comparecido ao enterro. Não sei se acreditariam em mim se eu dissesse que “não sabia”. E não vou negar, raro leitor: eu estava muito curioso para saber dos pormenores a respeito da morte dele.

Por uma rede social, contatei o primo dele. Eu disse que tinha acabado de saber que Gu morreu, pedi desculpas e fui direto ao ponto:

- Como foi isso, cara? Não acredito que Gu era bandido.

- Ele não era. Morreu por nada. 

O que o primo me contou se assemelha a um enredo de fazer inveja aos filmes da máfia. Era tão sórdido que se fosse transformado em ficção seria criticado pela inverossimilhança. Mas como diz Rubem Fonseca, no romance Mandrake: A Bíblia e a Bengala, a verdade não tem a obrigação de "obedecer ao possível". As tramas mais bizarras e perversas são produzidas pela vida real. 

Antes de contar como Gu morreu, um pouco da biografia do seu assassino. De tudo que o primo de Gu me disse, nada me deixou mais perplexo do que saber que ele foi morto por um outro amigo de infância meu: Caio, conhecido como “Cabeça”. Um rapaz que jogava gude e brincava de boneco comigo. Cresceu e, depois de uma vida em trabalhos degradantes, acabou seduzido pelo crime. Não vou negar que ele era uma criança violenta. Agredia a irmã brutalmente. Quando entrou no tráfico, rapidamente se tornou um matador sem escrúpulos. Armava emboscadas e matava traficantes adversários para tomar suas “bocas”. Oprimia comerciantes no bairro através de absurdas cobranças de “taxas de segurança”. 

Todo mundo sabe aqui no bairro que o seguinte ditado é verdadeiro: “bandido não dura muito tempo”. A carreira no crime leva a inimizades intermináveis, ao constante temor pela vida e, consequentemente, à paranoia. Caio estava sempre alerta. Quando soube que um traficante estava planejando matá-lo, sua paranoia só piorou. Ele ameaçou “tocar o terror” no bairro até que um suposto “alcagueta”, que estaria passando informações sobre ele ao seu adversário, fosse pego. Foi então que alguém teve a brilhante ideia de acusar Gu Ligeirinho de ser o dedo-duro.

- Cara, por que alguém faria isso? - perguntei ao primo de Gu.

- Ninguém sabe, cara. Ninguém sabe quem foi que contou a Caio. 

Alguém conseguiu convencer Caio que Gu era o alcagueta. Disseram a ele que Gu estaria passando informações ao traficante rival, como a localização da casa da mãe de Caio. Assim, uma emboscada estava armada para pegar Caio. Ele iria para a casa da mãe, onde seria assassinado pelo seu rival. 

Ninguém sabe se esse plano era real. 

Mas Caio acreditou. Ele foi até a rua onde Gu morava. Primeiro o agrediu com socos.

- Você é “peru”, rapaz! Vou acabar com sua vida.

Gu correu, Caio foi atrás atirando com seu revólver, sem se importar se os tiros pegariam em pessoas que não tinham nada a ver. Gu Ligeirinho era rápido. Porém, o pânico tomou conta dele. Numa situação de vida ou morte, o que fazer? Ele correu para dentro de um bar. Caio foi atrás. Não havia mais saída. Ele disparou várias vezes contra Gu, que morreu no local.

Agora o detalhe curioso: tempos atrás, eu escutei vagamente uma conversa sobre “alguém que foi morto num bar”. Não imaginava que era meu amigo de infância. 

O primo de Gu e outros familiares acreditam que ele “morreu por nada”.

- Não foi ele que disse. - me contou o primo. - Ele nem sabia nada sobre a mãe de Caio. 

Eu soube também que o pai de Gu queria vingança. Porém não rolou nada. Ele chamou uns caras de outro bairro para tentar saber quem contou a Caio que Gu teria "falado demais". Pegaram um “pivete”, que deu uma explicação assustadora: como Caio estava planejando aterrorizar o bairro, deram o “nome de qualquer um” para evitar mais mortes. Então, Gu teria levado a culpa para que mais vidas supostamente fossem salvas. 

O fato é: ninguém sabe se tal plano contra Caio era real, se existiu tal alcagueta, se Caio estaria pronto para matar mais gente e se Gu levou a culpa para poupar outros. Tudo isso é especulação. A verdade concreta e dolorosa é: meu amigo foi brutalmente assassinado. Assim são os bairros violentos: você pode morrer por causa de bobagem e boataria. 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

O Homem Obsoleto

Em uma cidade violenta, frequentar bar pode ser perigoso. É comum encontrar gente exaltada e sóbria disposta a quebrar o pau por motivos fúteis. Imagina, então, se estiver bêbada. Em dias de eleição presidencial, o bar pode se tornar mais perigoso ainda, e não por razões diretamente relacionadas à criminalidade. A defesa incondicional de líderes políticos também está levando à violência física e verbal. A obstinação nessa defesa pode ganhar contornos mais agressivos se o indivíduo estiver consumindo bebidas alcoólicas. 

No segundo turno de uma eleição para presidente, eu estive num bar na Barra quando dois homens começaram a discutir. Ambos estavam em lados opostos na disputa eleitoral.

- Seu candidato disse que vai legalizar o assalto!

- Mentira! Fake News!

- Ele é a favor do crime!

- O seu candidato é que é a favor do crime! Ele deu medalha para bandidos!

- Como você pode votar em ladrão!? Você dorme à noite?

- Quem vai votar em ladrão é você!

A cada fala, eles davam um gole no uísque. Estavam cada vez mais alterados emocionalmente.

- Pra mim quem vota em bandido é bandido!

- Então, você está esperando o quê para se entregar!? 

- VOCÊ ME RESPEITE, RAPAZ!

- VOCÊ É LADRÃO… SAFADO…

- VOCÊ DISSE O QUÊ? FALE DE NOVO, PRA VOCÊ VER SE NÃO QUEBRO SUA FUÇA, SAFADO!!

Os dois fecharam os punhos. Um deles derrubou um copo no chão acidentalmente, o que chamou a atenção do resto do bar. O barman correu para apartar a discussão. A situação piorou, apesar de não ter rolado agressão física.

- VOCÊ É NAZISTA!

- VOCÊ É QUE É NAZISTA! SEU CANDIDATO É NAZISTA! ELE DEFENDEU HITLER!

- MENTIRA! MENTIR É COISA DE NAZISTA!

Meia hora antes os dois estavam super tranquilos, confraternizavam, riam juntos. Até que começaram a discutir sobre política. Antes do debate acirrar, um deles passou por mim. Perguntou em quem eu votaria.

- Vou anular o voto. Não gosto de política. - respondi.

É claro que eu menti. Eu adoro política, mas costumo dizer a desconhecidos que não gosto apenas para evitar discussão fútil. Eu só conversava sobre política com meu pai e minha namorada. Como agora ela se tornou ex-namorada, a única pessoa no mundo com quem troco ideia sobre a política do Brasil é meu pai. O rapaz não gostou da minha resposta:

- Anular voto só ajuda o candidato bandido. - ele disse. 

Deu vontade de perguntar: você está falando de qual dos dois? Mas achei que não seria boa ideia. Depois de ter visto a briga, percebi que estava certo o tempo todo.

- Você é obsoleto, rapaz. - ele me disse. 

Confesso que não entendi. Por que eu seria obsoleto? Será que ele quis dizer outra coisa? Então lembrei que até uns dez anos atrás não era muito comum ver pessoas interessadas em política. Eu escutava muito a frase: “todo político é ladrão”. Talvez ele tenha dito que sou “obsoleto” porque eu afirmei que não gostava de política. Defender político com unhas e dentes era coisa de moderno. 

Também lembrei de um dos meus episódios favoritos de “Além da Imaginação" (1959):  “O Homem Obsoleto”.  É sobre um homem que foi preso e condenado por um Estado totalitário. O motivo? Como eu, ele era obsoleto, mas por outras razões. O Estado proibia a religião e os livros. O protagonista prisioneiro era crente em Deus e bibliotecário. Portanto, um “perfeito” obsoleto. 

Agora o detalhe singular: o Estado totalitário permite que ele escolha a forma como vai morrer. O condenado também pede (e é atendido) para que a sua execução seja televisionada e que o carrasco seja o único que saiba a forma como ele vai ser morto. 

Paro por aqui. Recomendo ao raro leitor que assista. 

Minhas reflexões posteriores tentaram relacionar esse episódio com a acusação de obsolescência contra mim. Talvez a fala daquele rapaz tenha algo de totalitário. Eu seria “obsoleto” porque não disse que apoiava o candidato dele. É uma possibilidade plausível. Mas não é possível afirmar com certeza. Pode-se dizer que a discussão agressiva foi uma manifestação de autoritarismo de ambos os lados. No entanto, também pode ter sido simplesmente uma sequência de atos irracionais de duas pessoas irritadas e bêbadas. A acusação de “nazismo” pode ter sido uma banalização oriunda de duas mentes totalitárias. Ou talvez tenha sido um xingamento que veio à cabeça num momento de raiva. Pode ser que depois os dois refletiram e perceberam que passaram dos limites.

Enfim, não quero saber. Vou assistir novamente “O Homem Obsoleto”. Adoro Além da Imaginação. 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Banalização do Nazismo

A acusação gratuita de nazismo virou moda. Alguns podem pensar que isso é apenas coisa de rede social. Não é. Tem Chefe de Estado citando o nacional-socialismo para fazer comparações falaciosas, insensíveis e descabidas. A barbárie não deixa de ser barbárie só porque recusamos a adjetivá-la com termos relacionados ao hitlerismo. Pergunto: será que precisamos chamar todo crime horrendo de “nazismo” para que isso desperte nossa intensa indignação? Não estou dizendo que a tragédia do Terceiro Reich é a "campeã" dos crimes contra a humanidade e que isso a torna incomparável. Cada tragédia envolvendo mortes de civis inocentes deve nos comover, porém não vamos fazer competição de crueldade. A motivação por trás da rotulação de "nazista" muitas vezes é a mesquinhez política. Adolf Hitler é uma figura satanizada (e com razão). Associar adversários políticos ao genocida é uma forma de demonizá-los. Todavia, a ignorância e a falta de reflexão também podem levar à má aplicação do termo "nazismo". Os manuais de lógica que me perdoem, mas farei bom uso do Declive Escorregadio. Começou com Chefes de Estado acusando o criminoso de guerra de ser “nazista”. O morticínio provocado por tal facínora tem a sua própria característica que o configura como um horror indescritível, Entretanto, será que pode ser enquadrado como “nazista”, que possuía uma singular perversidade? Em discussão na Organização das Nações Unidas (ONU), um Chefe de Estado discordou da acusação. - O homem é um monstro! No entanto, o método do nazismo era outro. - ele disse. Isso indignou representantes de outras nações. - VOCÊ ESTÁ DEFENDENDO ELE!? - Que absurdo! É claro que é nazismo! Encontramos biscoito club social no gabinete. O “social” escancara o fato: é “nacional-socialismo”. O líder perdeu o debate. O criminoso de guerra virou nazista. Os tribunais internacionais acataram a nova definição. Não demorou para qualquer crime de guerra ser transformado em nazismo. As especificidades do método nazista de extermínio foram ignoradas e desconsideradas. Um consenso foi se formando em torno da ideia de que a prática nazista se confundia com modos cada vez mais genéricos de concretizar o massacre. E só piorava. Tempos depois, em determinado país, a polícia covardemente matou dezenas de manifestantes, o que causou revolta no mundo. Na nova reunião da ONU, o Chefe de Estado desse país propôs que os policiais assassinos fossem considerados como “nazistas”. E mais uma vez houve uma voz dissonante: - Esses criminosos demonstraram frieza e crueldade. Mas o nazismo é possível no contexto da guerra. Nazismo e crime de guerra são sinônimos… De novo, o argumento despertou a indignação de outros líderes: - Como a ONU pode dar microfone para quem defende os nazistas que mataram os manifestantes!? - Eu não estou defendendo. Apenas acho que a acusação não cabe. Decidimos que os criminosos de guerra é que são nazistas! - Esse é um caso de guerra. Guerra do Estado contra o povo. Foi decidido que os policiais assassinos seriam julgados como nazistas no Tribunal Internacional. A violência policial começou a ser vista como sinônimo de nazismo. Pouco a pouco, crimes cada vez menos horrendos foram sendo considerados como “práticas nazistas”. Outro debate na ONU, meses depois, discutiu sobre a possibilidade de considerar corruptos como adeptos do nacional-socialismo. Uma voz dissonante ia falar: - Olha, eu discordo… No meio do argumento, ele parou. É a espiral do silêncio. Se rejeitasse a ideia de que corrupção equivale a nazismo, seria acusado de defender corruptos. Um outro Chefe de Estado disse: - Corruptos matam pessoas quando desviam dinheiro. Podemos considerar isso como genocídio. - Brilhante! - disse outro. A ideia foi aclamada na reunião. Todos aplaudiram. Agora, vamos da ONU para meu dia a dia. Estava no ônibus quando dois passageiros comentavam entre si sobre um assalto que o parente de um deles sofreu. O assaltante foi preso em flagrante e vai ser acusado de nazismo. É um caso que vai sobrecarregar ainda mais o tribunal que julga crimes contra a humanidade.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Os Homens da Madison Avenue

Conversava com uns amigos quando um deles recomendou uma série de TV americana.

- Mad Men! - ele disse. - Essa série é brilhante!

- Sobre o quê? - perguntou outro amigo.

- Sobre um grupo de publicitários que trabalha numa agência localizada na Madison Avenue.

- E por que é interessante?

- Há pouco a gente falava aqui sobre como conquistar mulheres. Eu acho que os protagonistas dessa série servem como modelos que qualquer homem comum pode se inspirar. 

Antes de ter computador, eu assistia TV por assinatura. Um dos canais disponíveis era a HBO, onde eu via Mad Men sendo anunciado durante o intervalo. Na época, não me interessei em assistir. As imagens que recordo são de homens com ternos, cabelos penteados e fumando cigarros. Aliás, os personagens fumam tanto que eu pensei que era uma série sobre a indústria do tabaco. 

Pouco tempo depois da recomendação do meu amigo, escutei outra vez sobre Mad Men. Na faculdade de Jornalismo, eu tive algumas aulas junto com alunos do curso de Publicidade. Certa vez, escutei dois alunos aspirantes a publicitários conversando a respeito. Eles estavam no primeiro semestre.

- A série dá alguma noção de como funciona uma agência de publicidade.

- Uma agência de publicidade na Madison Avenue dos anos 1960 dará noção a um aluno que vive em Salvador no século XXI?

- Alguma noção.

- A série é boa, mas não por causa disso.

Li a opinião da crítica especializada sobre Mad Men. É uma série bem elogiada. Tempos depois, comecei a assistir. O protagonista é carismático. É um homem bonito e bem-sucedido. Quem não queria ser como um cara assim? Há outros como ele. Entretanto, nem tudo é positivo. Esses homens são adúlteros em série, mentem para esposas e filhos, enxergam mulheres como meros objetos de uso e possuem relações problemáticas no trabalho e até entre eles mesmos. Sem falar dos problemas relacionados à época e lugar. A desigualdade racial é explícita: não há negros publicitários. Apenas faxineiros, ascensoristas e zeladores. Tudo bem, a série retrata os EUA dos anos 1960. Não vamos julgar esses valores com a mentalidade de hoje.

Mas esse risco de anacronismo explica por que é problemático enxergar tais personagens como “modelos” de homem sedutor ou de publicitário. O rapaz da universidade tem razão: não faz sentido buscar uma referência tão longe no tempo e espaço (Madison Avenue, anos 1960) para se ter noção de como funciona uma agência de publicidade. E menos sentido ainda teria a tentativa de imitar qualquer um deles na esperança de ter sucesso com as mulheres. 

Outro dia, vi no Youtube um terapeuta comentando sobre um paciente anônimo que se sentia frustrado por não conseguir “pegar mulher”. Ele teria assistido algum coach ensinando técnicas de conquista. Nos EUA, esses “especialistas em sedução” são chamados de pickup artists. O paciente aplicou as supostas técnicas e falhou desgraçadamente. A autoestima naturalmente caiu. 

Quando busca-se um modelo para imitar, surge uma lacuna entre a pessoa como ela é e a pessoa como ela quer ser. Quanto maior a lacuna, mais fracassada a pessoa vai se sentir. E quando tenta se inspirar em um publicitário americano dos anos 1960, cujo paradigma para a vida atual pode ser praticamente inviável em termos práticos, os danos para a autoestima podem ser extremamente nocivos.

Até imagino o terapeuta que vi no Youtube recebendo em seu consultório um homem que queria ser como Don Draper.

- Doutor, a minha secretária não cedeu aos meus encantos…

- Você precisa se aceitar como você é... Espera um pouco, você me disse que trabalha como operador de telemarketing, como tem secretária?!

- Eu não tenho!

- Então… Meu Deus…

Depois o paciente passa a virar um problema para a polícia. 

- Seu filho está entrando em agências de publicidade, dizendo que é publicitário e cantando as secretárias e outras funcionárias! - disse o delegado para a mãe do rapaz. 

O paciente usava o terno que ele comprou para ir à igreja. Passava gel no cabelo. Comprava maço de cigarro. E tentava seduzir mulheres. Falhou em tudo. O terno ficou sujo de vinho. Uma mulher derramou a bebida nele quando se sentiu ultrajada. Nem fumar o cigarro ele conseguia. Tossia tanto que parecia estar doente.

O terapeuta vai ter muito trabalho. 

Em tempo: Mad Men é, de fato, uma série brilhante.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

A piada do opositor

Se um preso quebrar o pau com um carcereiro por causa de uma caneta que lhe foi tomada, o raro leitor concordaria que seria uma reação desproporcional? Depende das circunstâncias, é verdade. Se fosse uma cadeia digna, com três refeições, bons tratos e cela limpa, talvez fosse exagerado querer brigar por isso. Na verdade, seria sinal de que o preso estava mimado demais. Tão mimado que não aceitava nem que lhe tirassem a caneta.

Mas e se for uma prisão atroz localizada no Ártico? Talvez pudéssemos até compreender a reação desmedida. Viver nas piores condições possíveis, e sem existir nenhuma esperança de sair dali, pode deixar qualquer preso pirado, até aqueles que são estoicos. 

Foi num lugar como esse que aconteceu o relato acima. Um preso político recebeu a punição de ficar na solitária, porque brigou por uma caneta. No entanto, chama mais atenção o que ocorreu na audiência em que esse mesmo preso teve com um juiz, por causa da briga. No diálogo com “vossa excelência”, o prisioneiro “esquentado” soltou uma piada, como se estivesse num ambiente descontraído e não numa prisão degradante reservada aos inimigos do regime:

- Excelência, eu vou lhe mandar meu número pessoal de conta bancária para que o senhor use seu enorme salário para aquecê-la, porque estou ficando sem dinheiro.

Observe a linguagem figurada: “aquecê-la”. É uma sutil referência ao local onde ele estava preso. Não era apenas o preso político que estava no “frio”. Sua conta bancária também estava. Em contraste, o juiz que decidiu sua punição estava no conforto, num lugar supostamente aquecido. Foi um humor feito com sutilezas.

No dia seguinte, esse preso estava morto. O nome dele? Alexei Navalny, de 47 anos, um dos maiores opositores do regime de Vladimir Putin, o autocrata russo. 

A piada de Navalny na audiência passaria totalmente despercebida se não fosse feita na véspera da sua morte. Alguns podem exaltar a firmeza do homem, pois fez humor numa situação horrível em que se encontrava: cumpria 30 anos, resultado de várias condenações em tribunais putinistas e farsescos, numa prisão com condições duríssimas e ainda seria punido com 15 dias de confinamento solitário. Há uma frase do humorista português Ricardo Araújo Pereira, presente na obra “A doença, o sofrimento e a morte entram num bar”, que pode ser perfeitamente aplicada nesse caso: “o humor pode ser […] uma estratégia para reagir ao sofrimento”. 

Ele estava numa condição em que era muito complicado se adaptar. O humor ajuda a nos afeiçoarmos ao mundo ou à situação em que nos encontramos. O humor é uma forma de lidar com a adversidade. Navalny parece que percebeu isso. A descontração diante da punição era inútil, pois não mudaria nada: ele continuaria preso e ainda acabaria na solitária. Porém, o humor é uma “espécie de mau perder”, como escreve Ricardo Araújo Pereira. “É uma atitude de valor equivalente à da criança que, depois de levar uma palmada, diz, de lágrimas nos olhos: ‘não me doeu’”, afirma o humorista português.

O sistema político putinista impede a ascensão de qualquer opositor que possua discursos inflamados contra o Kremlin. Se um político consegue apoio para disputar a eleição, e possui uma retórica contundente contra o atual governo russo, tem a candidatura barrada por algum motivo: inventa-se crimes, cria-se argumentos jurídicos falaciosos e até mesmo alega-se “erros técnicos”. 

Mesmo que o candidato seja totalmente limpo, a criatividade dos asseclas de Putin não tem limites. O político pode ser tão honesto que nunca foi capaz de estacionar em vaga para deficiente. Não importa. Vão encontrar uma forma de barrá-lo:

- Sinto muito, senhor. Sua candidatura foi indeferida.

- Mas como?! Não fiz nada de errado. Não há nenhum erro técnico.

- Os vizinhos reclamaram que o senhor colocou músicas de The Who com um volume muito alto, o que incomodou todo mundo no seu prédio. É o suficiente para entendermos que o senhor não tem condições de concorrer.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A Farmácia

Se Franz Kafka fosse vivo nos dias de hoje, teria escrito “A Farmácia”, em que o personagem principal passaria por dificuldades burocráticas absurdas ("kafkianas") só para conseguir comprar o medicamento que precisa.

Aconteceu comigo.

Uma frase exagerada, mas um tanto verdadeira, se tornou trivial aqui em Salvador e, talvez, no resto do Brasil: “em cada esquina há igreja e farmácia”. Só nas ruas de Brotas existem incontáveis farmácias (e igrejas). E eu fui escolher logo aquela em que os funcionários são extremamente rigorosos quanto à literalidade das receitas médicas. A pirâmide invertida que me desculpe, mas eu vou começar do começo e não do fato mais importante. 

Chego e encontro o segurança usando uma máscara para prevenir COVID-19.

- Boa tarde.

- Boa tarde.

Todos os funcionários usavam esse tipo de máscara. Tudo bem. Continuam cautelosos. Vou para a fila. Um rapaz e sua namorada estão na minha frente. Há três caixas. Dois estão atendendo clientes e há um caixa vago. Logo chega mais um funcionário e assume esse caixa. O casal vai ser atendido.

De repente, um homem, que já estava sendo atendido, dá uma tapa forte no balcão. Todo mundo olha para ele.

- Você não pode estar falando sério…. - ele diz. As mãos tremiam. O cara estava furioso.

- Eu não posso. Vai “dar B.O” pra mim. - respondeu o atendente.

“Dar B.O” significa se meter em problemas.

O segurança se aproxima e tenta convencer o homem furioso. Enquanto isso, tirei o celular do bolso e tentei me distrair. Não gosto de conflitos que são barulhentos e que chamam atenção. Fiquei distraído vendo vídeos de gatos e não ouvi o que o homem nervoso estava dizendo ao sair acompanhado pelo segurança.

Guardei o celular. Vi o casal conversando com a atendente. O rapaz dizia:

- Por causa de uma vírgula!

- Por causa de uma vírgula? - perguntei. 

A atendente estava usando uma lupa para ler a receita que a namorada do rapaz tinha dado a ela. Um rigoroso escrutínio. 

- Sim, eles rejeitaram a receita daquele homem porque faltou uma vírgula.

- Isso não pode ser sério. - eu disse. 

Foi quando me chamaram.  

- Boa tarde.

- Boa tarde. Em que posso ajudar?

- Ritalina.

Peguei minha receita amarela e dei. O atendente deu a primeira olhada. 

- Já volto. - ele disse. Foi a uma sala. Voltou com uma lupa.

Enquanto ele examinava a receita, falei:

- Gostei da cautela de vocês.

- Que cautela? - ele perguntou.

- Mesmo com o fim da pandemia, vocês ainda usam máscara.

- Não é nada disso. Usamos porque a Anvisa ainda está analisando o nosso requerimento.

- Requerimento? A Anvisa precisa responder um requerimento para vocês pararem de usar máscara?

- Sim. Se tirarmos antes, pode dar problema.

Foi então que veio a má notícia.

- Eita, rapaz. Está faltando o “m” em “mg”. - disse o atendente.

- Eu preciso muito do medicamento. Vocês não podem deixar passar essa?

- Não. Você só poderia comprar ritalina de 10g. No entanto, não vendemos. Aliás, nem existe. Aqui só temos de 10mg.

- Eu vou ter que voltar à clínica só para pedir à médica que escreva um “m” na receita?

- Sim… - respondeu o atendente.

- Pega uma caneta e desenha você mesmo. O que custa?

- Não temos caneta azul. Mas já fizemos um requerimento.

- Isso é um absurdo!

- Entendo sua frustração. Porém, eu apenas sigo a lei.

O segurança se aproximou de mim. A princípio, não entendi. Eu não estava procurando nenhuma confusão. Então, notei que ele queria me ajudar, como ajudou o outro cliente.

- Se eu fosse você, cairia fora logo, antes que tenha que fazer um requerimento para ir embora da farmácia…

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Assassinato no Condomínio


Olho o celular pela manhã e vejo a notificação do aplicativo de um portal de notícias. A informação: um vizinho matou o outro dentro de um condomínio no bairro de Caji, em Lauro de Freitas (Região Metropolitana de Salvador). O assassino utilizou uma arma de fogo.

Conheço Caji, pois tenho tios que moram lá. E também já trabalhei ali perto. Meus tios moram nesse lugar há uns vinte anos, suponho. Vou nessa casa deles desde quando eu era pequeno. Há muito tempo, tinha mais matagal do que casa. Era um lugar assustador, principalmente à noite. Certa vez, meu tio e umas pessoas que estavam com ele em seu carro foram abordados por criminosos que emboscavam pessoas para assaltar. Ele conseguiu arrancar com o carro e fugir, mas os bandidos dispararam. Ainda bem que ninguém ficou ferido. Ao chegar em casa, o susto ao ver as marcas de bala no veículo.

O tempo passou e Caji virou um lugar supostamente menos assustador. Hoje há mais casas do que matagal. As estradas de barro foram asfaltadas. Minhas aulas na autoescola foram nas ruas de Caji. Condomínios, prédios, comércio… tudo isso emergiu nesse bairro. Hoje tornou-se um lugar “urbano”. As coisas mudaram tanto que até o nome pode ser alterado. Meu tio sugeriu isso uma vez.

- Qual o nome desse bairro? Caji? - perguntei a ele.

- Olha, a gente está querendo mudar esse nome. - ele respondeu.

A “urbanização” de Caji não significa, porém, que o problema da criminalidade e o medo da violência cessaram. Mesmo com ruas asfaltadas, casas e condomínios por toda parte, o perigo continua. A rua onde mora meus tios está quase sempre deserta, mesmo em plena luz do dia. A faxineira da casa deles me contou que por ali há inúmeros assaltos. Os bandidos usam carro ou moto para cometer crimes.

- Outro dia vi um motoqueiro puxando a bolsa de uma mulher. - ela disse.

Também escutei relatos sobre moradores “apressados”. No ponto de ônibus, uma mulher disse:

- Os moradores daqui chegam e entram correndo em casa. Há o medo de que os bandidos os abordem na porta de casa e depois entrem.

Ela própria parecia estar com pressa para sair daquele bairro. A pressa me contagiou, pois era um lugar deserto. Eu também estava doido para sair daquele ponto de ônibus.

Não escutei ou li nada a respeito, mas é fácil supor que já houve invasão de domicílio em Caji. Eu fico preocupado, pois a porta da garagem da casa de meu tio abre e fecha bem devagar quando ele chega com o carro. Dá tempo para um ladrão rendê-lo e entrar na casa.

O medo de ser rendido por bandidos pode ser observado em Caji. Os condomínios possuem arame farpado, câmeras e seguranças. As casas possuem muros muito altos, exigindo que o bandido tenha habilidades de Homem-Aranha. No entanto, nada disso consegue impedir a violência de alcançar os moradores. Como diz a notícia citada no início da crônica, uma pessoa foi assassinada dentro de um desses locais.

Não se sabe como ou por que o atirador, que está preso, tinha uma arma. É possível que, de tanto escutar relatos de violência na área, o agora criminoso tenha optado por adquirir uma arma, acreditando que ela seria útil para a autodefesa. Uma hipótese plausível. O aplicativo do portal de notícias não informou (ainda) as circunstâncias do crime. Sabe-se que uma “discussão” teria descambado para o homicídio. Seria, portanto, um possível caso de assassinato por motivo fútil. A arma, cujo suposto propósito seria enfrentar ladrões e assaltantes, acabou sendo usada para apagar o vizinho. Ao ser interrogada, a arma certamente dirá isso em sua defesa.

- Ele me garantiu que eu só seria usada contra bandidos da rua.

Há manifestações da violência que conseguem driblar arame farpado e alarmes, pois podem aparecer de onde menos se espera. Uma pessoa de bem emocionalmente alterada, e portando uma arma, pode acabar sendo tão ou mais perigosa que um ladrão na rua.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A entrega - uma crônica sobre a paranoia


Quarta-feira de Cinzas. Alguém grita meu nome do lado de fora do beco onde fica minha casa. E grita meu nome bem alto. Até me assustei um pouco. Em alguma casa na escadaria onde fica o beco, uma pessoa que me conhece diz à pessoa que me chama:

- Ele mora nesse beco aí.

A pessoa que me procura revela-se como um suposto entregador, que teria uma suposta encomenda para mim. Devo descer e atendê-lo sem maiores preocupações? A pergunta pode parecer estranha para o raro leitor, mas uma postura cautelosa assim não é incomum por aqui. Eu moro em um dos bairros mais violentos de Salvador. E há pelo menos dois conhecidos casos de homicídios em que o assassino se passou por entregador de encomenda. No entanto, tratam-se de ocorridos relacionados ao tráfico de drogas. Eram bandidos querendo tomar o território de outros. Não há motivo para alguém querer me apagar. Ou será que há? Talvez algum torcedor do Atlético Mineiro cansado de me assistir gozando do time dele em redes sociais. Talvez algum torcedor do Botafogo, porque eu disse que a Copa Conmebol era a “terceira divisão da América”. Algum fanboy pode querer me matar só porque eu falei mal da série televisiva favorita dele. Ou, quem sabe, alguma paquita de político me colocou na mira, pois eu certamente zombei de seu líder. É, parece que a fila é grande!

E tem mais outro detalhe: uma entrega em plena Quarta-feira de Cinzas?

Há uma piada com um fundo de verdade entre bandidos e pessoas de bem aqui na área: entrega na Quarta de Cinzas? Não atenda, pois é cilada. Pode ser um matador enviado ou a polícia querendo flagrar você usando tv a cabo pirata.

Como se pode notar, a paranoia não é nada insólita por aqui. Thomas Pynchon, um dos meus autores favoritos, abordou sobre a paranoia em seus livros. Em “O Leilão do Lote 49” - publicado em 1966, cujo enredo leva a uma (suposta?) conspiração envolvendo empresas de distribuição postal -, a protagonista vive acompanhada pela paranoia. Então, me lembro que eu posso estar envolvido em minha própria conspiração postal. Quando criei a lista acima de pessoas que poderiam desejar o meu fim, esqueci de mencionar os Correios. Eu fiz várias reclamações contra essa estatal em um site na web. Vai ver ficaram incomodados e estava na hora de acertar as contas. O entregador não estava com o tradicional uniforme amarelo e azul. Todavia, o assassino não iria dar esse mole. Pelo que sei, a máfia, as gangues do tráfico de drogas ou qualquer outra organização criminosa não mandam seus sicários vestirem o uniforme antes de irem matar alguém.

De qualquer forma, desço para atender. Apareço da janela. Qualquer movimento suspeito ou brusco com as mãos e me jogo no chão. Ele coloca as mãos no bolso. É agora?!

Tirou uma caneta.

- Você é o próprio destinatário?

- Sou.

- Diga seu RG.

Dei minha numeração do RG. Ele anota num papel. Pergunto:

- É só isso?

- Sim. - ele disse.

- Obrigado.

- Por nada.

- Trabalhando numa Quarta de Cinzas?

- O que é que tem?

- Não é comum.

- Você acha que sou algum carteiro? - ele disse antes de ir.

Acusação injusta na televisão

Era noite, meu vizinho começou a receber sucessivas mensagens em seu Whatsapp. Ao lê-las, foi tomado pelo susto. Soube que seu rosto aparece...