quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

A era do carro elétrico

É cedo para dizer que o Brasil já está na era do carro elétrico? Acredito que sim. Mencionei “a era” mais como uma homenagem. Há quase 123 anos, João do Rio decretou: “E, subitamente, é a era do Automóvel”. Ele descreveu a máquina automotiva como um “monstro” que bufa. Pois são os “peidos” dos automóveis que ajudam a degradar o ambiente. O uso do carro elétrico seria mais sustentável. O carro elétrico não peida. É um avanço.

Mas com o carro elétrico emergem adaptações necessárias. João do Rio disse também que o automóvel “tudo transformou com aparências novas e novas aspirações”. O mesmo pode ser dito, mais de cem anos depois, do carro elétrico. Leio no jornal Valor Econômico que o “Carro elétrico agita reunião no condomínio”. É a manchete ipsis litteris. O carro não peida, mas exige carregamento pela tomada. Imagine um sujeito morando em um determinado condomínio. Ele compra um carro elétrico, percebe que a bateria está acabando, pega a tomada do veículo e observa que não há entrada adequada para carregar o carro. Ele vai furioso atrás do síndico.

- O condomínio de vocês não tem entrada para eu carregar meu carro.

- Sinto muito, isso aqui foi construído antes do carro elétrico começar a existir.

- Olha eu pago essa p… Então trate de dar um jeito.

- Senhor, se acalme para que possamos pensar numa solução…

- Eu quero carregar agora! 

O morador furioso precisaria de uma tomada de 220 volts aterrada. Ele tem um carregador portátil que veio junto com o carro. Porém, serão necessárias umas 12 horas para carregar a bateria. Se quiser sair com o carro no outro dia, ele precisa da tomada e do tempo.

- Eu vou trabalhar amanhã cedo! 

- O que posso fazer?!

O síndico precisaria adaptar a garagem do prédio, mas isso não é algo que se faça da noite para o dia. Ele precisaria de consultoria antes. Portanto, ele não poderia mesmo fazer nada naquele momento.

O morador o pega pelo colarinho. Mas o raro leitor fique tranquilo. O diálogo e a ação do morador são frutos da minha imaginação. Entretanto, descrevem algo que pode se tornar mais comum na medida que carros elétricos vão sendo adquiridos e se tornando mais frequentes no Brasil. Segundo a reportagem do Valor, houve discussão que foi parar na polícia.  

João do Rio disse que o automóvel de sua época foi “o grande transformador de formas lentas”. Atualmente, as novas necessidades que vão surgindo graças ao carro elétrico implicam no surgimento de novos serviços. O jornal mencionou a existência de uma empresa que se especializou em diagnósticos para a adaptação de edifícios ao carregamento de carros elétricos. É possível que eventualmente apareçam empresas de arbitragem especializadas em buscar consensos entre moradores a respeito da configuração elétrica do condomínio. Não vamos querer que o síndico apanhe ou que os moradores quebrem o pau entre si. Também não é bom ficar incomodando a polícia com discussões sobre tomada. 

É verdade que alguns moradores tentarão encontrar suas próprias soluções. Há aqueles que vão treinar artes marciais. Prevejo que junto com o crescimento do uso de carros elétricos haverá o aumento de números de alunos nas aulas de defesa pessoal. No formulário de inscrição, se houver, para as aulas de luta terá a seguinte opção na pergunta sobre os motivos para a matrícula: "você e/ou seu vizinho possuem carro elétrico". 

João do Rio percebeu outra coisa na sua época: o automóvel impacta até a linguagem. "A reforma começa, antes de andar, na linguagem e na ortografia". Ele fala sobre diálogos "bizarros" em que as pessoas citavam siglas e palavras em inglês. Com o carro elétrico, as conversas de hoje fatalmente terão suas siglas.

- Qual o seu carro?

- Volkswagen ID. 2ALL.

- É muito bonito! Só que eu quero um BYD Dolphin.

Mas voltemos à questão da engenharia civil. Não são apenas os edifícios com apartamentos que precisarão se adaptar aos carros elétricos. Shopping centers, como diz a reportagem do Valor, já estão cogitando instalar eletropontos com o intuito de atender clientes que possuem carros elétricos. É possível que ao longo dos anos o carro elétrico se torne universal nas pistas do Brasil - ou seja, que ele acabe se tornando “o ideal de toda a gente”, nas palavras de João do Rio. Isso quer dizer que toda a cidade vai precisar se adequar. Principalmente a vizinhança em condomínios. 

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2024

Dia do Comediante

Tive, e talvez ainda tenha, vocação para a comédia. E desde a infância. Em suas palavras (escritas) de despedida, minha professora da quarta série percebeu que se tornar comediante poderia ser um caminho para mim. Não foi em tom de zombaria. O que ela disse, ipsis litteris: “você […] tem a capacidade de alegrar todos à sua volta com suas histórias e suas trapalhadas”. Eu fui uma criança impulsiva, o que me levou a ser o “palhaço da turma”. Com a maturidade da vida, notei que ser comediante era mais do que palhaçadas improvisadas na sala de aula. 

Dá muito trabalho ser um bom comediante. A comédia é uma arte performática. Além disso, não há comédia sem público. Se você cria uma piada e conta ela num local onde não há absolutamente ninguém, isso não é comédia. Precisa ter gente rindo. Ou te xingando por causa da piada ruim. Então, para ser comediante, você tem que saber falar em público. 

Mas o mais complicado é criar piadas engraçadas. O comediante possui um texto. Mais difícil ainda é criar boas piadas com o improviso. Isso exige raciocínio rápido por parte do piadista. Uma boa capacidade de relacionar coisas aparentemente sem nenhuma ligação também ajuda bastante.

Para escrever bons textos e produzir boas performances é preciso estudar.

O fato é que não sou chegado a falar em público. Não se trata de medo. Eu sou do tipo recluso, como meus mestres literários Rubem Fonseca e Thomas Pynchon. Portanto, não sirvo para contar piadas diante de uma plateia. Posso até fazer piadinhas com amigos, mas se a roda de conversa enche, eu me contenho. 

O que eu gostaria era de escrever piadas que as pessoas pudessem ler e rir em suas casas. Há definições que distinguem o comediante do humorista. O primeiro, como eu disse, trata-se de uma pessoa que faz apresentação cômica. O segundo seria mais uma atividade intelectual. O humorista escreve artigos de humor, peças de comédia, anedotas etc. Pode se dizer que a comédia está mais próxima do teatro e o humorismo se aproxima da escrita jornalística.

Entre humorista e comediante, eu prefiro o primeiro. Desculpa, querida professora.

Outra coisa que me desestimulou para a carreira da comédia é a possibilidade de ser hostilizado pelo público. Se você conta piadas sem graça, na melhor das hipóteses a plateia te vaia ou te xinga. Na pior, você pode ser agredido fisicamente.

Há uma anedota sobre um comediante fracassado que era, vejam só, alvo de piadas. Imagina o piadista ser tão ruim que ele acaba se tornando vítima de chalaças produzidas por pessoas sem graça. 

No Bar de Comédia onde ele trabalhava, aconteciam frequentes altercações provocadas por gente que estava farta de comédia de péssima qualidade. A cada dia o público diminuía. Numa noite, depois ter contado uma piada politicamente incorreta que envolvia negros e esgoto, uma pessoa da plateia, visivelmente embriagada, foi direto ao ponto:

- Todo dia é essa merda!

- Quem sabe a p… da sua mãe sobe aqui e faz melhor! - retrucou o comediante.

- P… é a sua mãe, seu racista!

A troca de palavras gentis e elogiosas entre os dois descambou para um nível de violência que ninguém tinha visto por ali até então.

Tudo isso mostra que até na vida de comediante pode haver riscos. Talvez seja uma das profissões mais perigosas do mundo. Um público irritado com uma comédia de baixa qualidade pode se tornar agressivo.

Por outro lado, se o humorista produzir texto ruins, o que pode acontecer é o recebimento de “cartas do leitor” manifestando um tom crítico e feroz. O humorista não corre tantos riscos de sofrer agressão física. A não ser que ele irrite algum leitor sociopata, que pode querer ir à casa dele para fazer alguma besteira.

No entanto, nem tudo é ruim. O humorismo e a comédia ajudam a ter uma postura estoica diante das incertezas do mundo. 

O Isentão

Estava na entrada do cinema, com minha então namorada, quando notei que dois rapazes estavam discutindo política e havia um terceiro com eles que não dizia nada. Em determinado momento, o rapaz quieto foi questionado pelos outros dois. Não ouvi bem qual foi a pergunta. Mas a resposta não agradou nenhum dos dois. Ou seja, os dois adversários na discussão concordavam numa coisa.

- Isentão! - disse um deles ao terceiro rapaz.

Numa democracia polarizada, militantes que são adversários entre si podem acabar se unindo para fustigar o “isentão”, aquele eleitor que não se identifica com as duas maiores forças políticas de um determinado país. 

O adjetivo “isentão” é irônico. E é isso que o torna o maior paradoxo do nosso tempo. Explico: além de não ser isento, o “isentão” consegue a proeza de estar nos dois lados da polarização ao mesmo tempo. Já que o “isentão” não seria neutro, apenas fingiria ser, ele só pode estar do lado do inimigo.

Isso é comum na internet. Por exemplo, o “isentão” nas redes sociais consegue ser acusado de comunismo e de ser agente do imperialismo americano simultaneamente. Assim como o jornalismo profissional se torna um dos alvos preferenciais dos caçadores de “isentões”. O jornalista precisa manter equidistância dos agentes políticos. É um princípio ético básico. Porém, isso é mais do que o suficiente para que seja atacado pelos sectários. Os jornais da “grande imprensa” se disfarçariam de “isentões” para ocultar suas preferências políticas: a Folha de S. Paulo seria a “Foice de S. Paulo” ou um jornal a serviço do neoliberalismo; o Estadão é “Esquerdão” ou “porta-voz do golpismo de direita”, entre outros exemplos. As publicações verdadeiramente “imparciais” e “isentas” seriam os panfletos que confirmam as convicções das claques.

Outro dia, propus a um amigo que criássemos o “Calendário do Isentão”. Ele achou que fosse piada.

- Essa foi boa. - ele disse.

- Não, eu estou falando sério. - respondi.

- Sério? Calendário do Isentão?

- Sim. Quando eu não falei sério?

- Várias vezes. Às vezes, não sei se você brinca ou fala sério.

- Desta vez é sério.

Sugeri que deixássemos claro nas redes sociais quais os dias em que determinado rótulo é adequado. Por exemplo: “me chame de comunista só nas segundas-feiras; nas terças, eu sou capacho do imperialismo americano etc.”

- Viu? Você nunca fala sério. - disse meu amigo.

Brincadeiras à parte, há algo de tenebroso em tudo isso. Acredito que as tiranias odeiam mais os “isentões” do que os seus inimigos declarados. Na escala do ódio ditatorial, o isentão só não é mais detestado que os apóstatas. Há mentes que não acreditam na existência de pessoas independentes. Para elas, a seguinte frase é quase uma lei da natureza: “quem está em cima do muro sempre cai do outro lado”. Ou seja, o “isentão” é sempre do mal. Mas seria um mal ainda pior, pois seria um inimigo, um ser traiçoeiro sob um disfarce.

Agora me deixe terminar o relato do cinema. Percebi que o terceiro rapaz, que seria um “isentão”, foi praticamente deixado no vácuo pelos outros dois que ainda discutiam obstinadamente. Depois, parei de prestar atenção, pois estava decidindo com minha namorada qual dos dois filmes que sobraram (descartamos os demais que estavam em cartaz) iríamos assistir. 

- Nenhum dos dois. Vamos para a praça de alimentação.

- Isentão. - ela disse, em tom de brincadeira.

Quer dizer, eu espero que tenha sido mesmo de brincadeira!

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

Loteria em Salvador

“Eu amo a rua”, escreveu João do Rio. Se ele precisasse andar diariamente em ruas de Cosme de Farias, bairro de Salvador, tenho certeza que ele nunca escreveria isso. 

Uma conhecida aproveitou minha ida ao mercado para pedir que eu passasse na Casa Lotérica e fizesse uma aposta (com o dinheiro dela) na Mega-Sena. No caminho para o mercado e Lotérica, eu preciso passar por uma rua no bairro citado. Não sei quem foi o gênio que projetou aquela rua. As calçadas são mais estreitas que o normal. Ele, o urbanista, não pensou na coleta de lixo. Resultado: sacos de lixo se acumulam nas calçadas, impondo ao pedestre um dilema cruel: ou passar por dentro da imundície ou ir pela pista, onde passa carros e ônibus, e correr o risco de ser atropelado.

Quando chove, esse impasse, que o andante precisar enfrentar, deixa de existir. Todavia, o raro leitor não pense que isso é boa notícia: o dilema some porque a água da chuva espalha o lixo pela pista. Seja andando na calçada ou na via, temos que passar por cima do lixo. 

Sempre me lembro da definição de “flanear”, citada em uma famosa crônica de João do Rio: “perambular com inteligência”. Eu me pergunto se os flanêurs de outrora eram menos habilidosos que os de hoje. Alguém pode objetar que os desafios impostos pelas ruas de cem anos atrás eram mais complicados, pois a urbanização não era tão sofisticada quanto hoje: nos dias atuais, a vida do pedestre está melhor. Faz algum sentido. Foi o próprio João do Rio quem disse, em outro texto: “hoje é melhor do que ontem e pior do que amanhã”. Mas a urbanização de hoje possui problemas que exigem uma habilidade singular dos pedestres. 

Consigo chegar ao fim da rua. Sobrevivi. Porém, há outro desafio: as filas intermináveis da Casa Lotérica. Era um período em que pessoas costumavam pagar as contas do fim do mês. Até a fila reservada para apostar na Mega-Sena estava grande. Relembrei do conto “A Loteria em Babilônia”, de Jorge Luis Borges: na história, as loterias, em que os vencedores ganhavam moeda de prata, foram um fracasso. Não sei (ninguém sabe, na verdade) quem foi que as criou. Porém, se ele estivesse estabelecido suas criações aqui em Salvador (ou no resto do Brasil), e não na Babilônia, seria um sucesso. As pessoas daqui gostam de jogar. É a esperança de ficar milionário da noite para o dia. Aliás, o fracasso dessas loterias no conto de Borges estava relacionado ao fato de elas se dirigirem unicamente à esperança, e não “a todas as faculdades do homem”. 

A fila anda devagarzinho. Atrás de mim, uma conversa edificante. Dois caras discutem métodos de depilação do traseiro. Estavam conversando em tom de brincadeira. Na minha frente, uma moça reclama da lentidão e olha para o relógio a cada cinco minutos:

- Desse jeito vou perder o almoço. - ela disse. Nunca é uma boa ideia ir para uma fila de lotérica na hora do almoço. Estávamos há uns vinte minutos na fila. Ela chegou um pouquinho antes de mim. Um homem à frente dela começou a explicar que a lentidão sempre acontece:

- Se você tem que ir ao médico logo depois de sair daqui, esqueça. Melhor você ir à clínica primeiro. Ou vai perder o seu compromisso. 

Depois de 35 minutos, chegou a minha vez. Paguei as apostas da senhora e voltei para casa. No caminho, a rua. Não sei por quê, mas a volta parece ser mais longa do que a ida. Parece que os meus anseios, para chegar em casa logo, me fazem ter essa impressão. 

Sobrevivi à rua e entreguei os comprovantes para a conhecida. Chego em casa. Deito na cama. Então, lembrei que tinha que almoçar. Só que não tem comida pronta, eu ia sair para comprar… 

Esqueci de ir ao mercado!

Vou ter que passar pela rua de novo.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Que vexame, meu Deus!

Não assisti o jogo entre Cruzeiro e Sousa-PB desde o início. Estava ocupado com outras coisas. Li no X (ex-Twitter) que o primeiro tempo foi pavoroso. Bateu o desânimo. E a preocupação. Cruzeiro tem um investimento superior ao time paraibano. Mas isso não se refletia dentro do campo. 

Segundo as duas folhas salariais, o time celeste deveria vencer sem dificuldades. O problema é que isso pode ficar só na teoria. Aquele valor numérico, que representa quanto o elenco ganha, não garante nada. E há outras variáveis: por exemplo, o campo estava encharcado. Não, isso não é uma desculpa. Como diz o Eclesiastes, “tudo sucede igualmente a todos”. O campo estava ruim tanto para o Cruzeiro quanto para o próprio dono da casa. 

Torço para o Cruzeiro desde 1999. Sou baiano e cruzeirense, uma peça raríssima. Não é comum encontrar torcedores do Cruzeiro nas ruas de Salvador. Além dos maiores times locais, as pessoas gostam mais dos clubes do chamado “Eixo Rio-São Paulo”. Lembro de uma conversa que tive com um colega de escola, no ensino médio:

- Você torce para que time? - ele me perguntou.

- Cruzeiro.

- Cruzeiro!? As pessoas torcem para Flamengo, São Paulo, Corinthians… Nunca conheci outra pessoa que fosse cruzeirense.  

O jogo entre Cruzeiro e Sousa-PB, ontem, era um confronto de mata-mata. Um vitória simples do Sousa e o Cruzeirão seria eliminado. Bastava um empate para meu time avançar. O Sofascore me informa que o segundo tempo começou. O placar: 0 a 0. Como qualquer torcedor, a gente fica otimista, ainda que seja por um momento. Passa pela cabeça: “o time tem condição de vencer”. Meia hora depois: 0 a 0, ainda. A preocupação volta. Em outro cômodo, meu pai assiste a TV e muda para o canal onde está sendo transmitido o jogo. Mesmo assim resisto em ir ver. 

O até então persistente placar de 0 a 0 me fez relembrar momentos da pior fase do Cruzeiro na história: o time tinha uma dificuldade hercúlea para derrotar adversários com investimento inferior. Isso acontecia muito nos anos 2020-21, que foi o período em que o Cruzeiro esteve passando sufoco na Série B. Nesse biênio, o clube estava mais financeiramente ferrado do que hoje, tinha uma gestão pior que a atual, possuía os piores elencos já vistos em sua trajetória e sofria vexames absurdos. Foi um tempo de aflição, como canta Zé Geraldo. Alguém pode dizer que dois anos é “pouca coisa”. Para um clube grande como Cruzeiro, a angústia de dois anos é muita coisa. Parece que foi vinte, trinta anos…

Escuto o locutor gritando “gol” na TV que meu pai assiste.

- Eita, Cruzeiro! - diz meu pai.

Pronto! Estava acontecendo uma exata repetição dos vexames de três ou quatro anos atrás. 

- P… que pariu! - eu disse. Só me restou xingar. 

Fui capturado pelo pessimismo que talvez qualquer torcedor sinta quando seu time toma gol no final do jogo. “Ferrou! Está tudo perdido”, pensei. Meu pai, um carioca torcedor do Flamengo, demonstrou mais otimismo que eu:

- Ainda tem tempo, Cruzeiro.

Havia tempo. Tentei usar a razão: “pode ser que dê pra reagir”. Repito: o empate classificava o Cruzeiro, segundo as regras da competição. No entanto, o jogador Danillo Bala destruiu qualquer esperança. Fez outro gol. Só escutei meu pai dizer:

- Como toma um gol desses!?

Cruzeiro foi derrotado e eliminado na primeira fase. É o maior campeão da Copa do Brasil. Foi vencido de forma vergonhosa. Depois dos anos 2020-21, alguém pode argumentar, o torcedor cruzeirense poderia estar anestesiado para enfrentar uma situação assim. Mas a derrota de ontem foi um tipo singular de vexame. Foi algo que não se viu antes, nem mesmo nas piores fases. 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Sumiços e Emboscadas

A gente constrói uma vida em determinado bairro. Depois, por causa das ocupações e responsabilidades que vão aparecendo no decorrer do tempo (como um emprego em outro bairro), nos afastamos desse local - não me refiro necessariamente à distância física, mas sim a um afastamento emocional. Quando voltamos a ter uma aproximação afetiva, certamente vamos notar mudanças, que podem ser boas ou desagradáveis. Dia desses, notei uma mudança extremamente ruim. 

Notei que um amigo de infância chamado Gustavo, ou melhor, o “Gu Ligeirinho” - por causa da sua velocidade no futebol - tinha “sumido”. Nunca mais o tinha visto e nem conversado com ele. Pensei que ele poderia ter mudado de vida - arrumou um bom emprego e construiu família. Isso seria uma boa mudança.

Perguntei a uma senhora, que também me conhece há muito tempo.

- A senhora tem notícias de Gu Ligeirinho?

- Não soube? Mataram ele!

- O QUE!?

É isso. Meu amigo de infância foi assassinado. Mais um. Quando ela me deu a notícia, senti uma breve tontura. Comecei a suar. O cara morreu e eu não sabia. Não fui ao enterro dele, nem prestei condolências à família. 

- Quando foi isso?

- Tem dois meses!

- Por que mataram ele?!

- Não sei, meu filho. Disseram que foi envolvimento com o tráfico.

Eu senti vontade de dizer para ela: “é mentira!”. Mas eu não disse. Eu sabia que isso poderia ser verdade. Não era uma hipótese absurda. Gu era um cara do bem. No entanto, alguns amigos meus que eram boas pessoas acabaram no crime e foram mortos. Não é impossível gente se envolver no tráfico de drogas, se transformar num bandido frio e depois ser morto.

A senhora não sabia de mais detalhes. Todavia, eu estava interessado. Fui atrás de familiares. Iria tentar confortá-los e pedir desculpas por não ter comparecido ao enterro. Não sei se acreditariam em mim se eu dissesse que “não sabia”. E não vou negar, raro leitor: eu estava muito curioso para saber dos pormenores a respeito da morte dele.

Por uma rede social, contatei o primo dele. Eu disse que tinha acabado de saber que Gu morreu, pedi desculpas e fui direto ao ponto:

- Como foi isso, cara? Não acredito que Gu era bandido.

- Ele não era. Morreu por nada. 

O que o primo me contou se assemelha a um enredo de fazer inveja aos filmes da máfia. Era tão sórdido que se fosse transformado em ficção seria criticado pela inverossimilhança. Mas como diz Rubem Fonseca, no romance Mandrake: A Bíblia e a Bengala, a verdade não tem a obrigação de "obedecer ao possível". As tramas mais bizarras e perversas são produzidas pela vida real. 

Antes de contar como Gu morreu, um pouco da biografia do seu assassino. De tudo que o primo de Gu me disse, nada me deixou mais perplexo do que saber que ele foi morto por um outro amigo de infância meu: Caio, conhecido como “Cabeça”. Um rapaz que jogava gude e brincava de boneco comigo. Cresceu e, depois de uma vida em trabalhos degradantes, acabou seduzido pelo crime. Não vou negar que ele era uma criança violenta. Agredia a irmã brutalmente. Quando entrou no tráfico, rapidamente se tornou um matador sem escrúpulos. Armava emboscadas e matava traficantes adversários para tomar suas “bocas”. Oprimia comerciantes no bairro através de absurdas cobranças de “taxas de segurança”. 

Todo mundo sabe aqui no bairro que o seguinte ditado é verdadeiro: “bandido não dura muito tempo”. A carreira no crime leva a inimizades intermináveis, ao constante temor pela vida e, consequentemente, à paranoia. Caio estava sempre alerta. Quando soube que um traficante estava planejando matá-lo, sua paranoia só piorou. Ele ameaçou “tocar o terror” no bairro até que um suposto “alcagueta”, que estaria passando informações sobre ele ao seu adversário, fosse pego. Foi então que alguém teve a brilhante ideia de acusar Gu Ligeirinho de ser o dedo-duro.

- Cara, por que alguém faria isso? - perguntei ao primo de Gu.

- Ninguém sabe, cara. Ninguém sabe quem foi que contou a Caio. 

Alguém conseguiu convencer Caio que Gu era o alcagueta. Disseram a ele que Gu estaria passando informações ao traficante rival, como a localização da casa da mãe de Caio. Assim, uma emboscada estava armada para pegar Caio. Ele iria para a casa da mãe, onde seria assassinado pelo seu rival. 

Ninguém sabe se esse plano era real. 

Mas Caio acreditou. Ele foi até a rua onde Gu morava. Primeiro o agrediu com socos.

- Você é “peru”, rapaz! Vou acabar com sua vida.

Gu correu, Caio foi atrás atirando com seu revólver, sem se importar se os tiros pegariam em pessoas que não tinham nada a ver. Gu Ligeirinho era rápido. Porém, o pânico tomou conta dele. Numa situação de vida ou morte, o que fazer? Ele correu para dentro de um bar. Caio foi atrás. Não havia mais saída. Ele disparou várias vezes contra Gu, que morreu no local.

Agora o detalhe curioso: tempos atrás, eu escutei vagamente uma conversa sobre “alguém que foi morto num bar”. Não imaginava que era meu amigo de infância. 

O primo de Gu e outros familiares acreditam que ele “morreu por nada”.

- Não foi ele que disse. - me contou o primo. - Ele nem sabia nada sobre a mãe de Caio. 

Eu soube também que o pai de Gu queria vingança. Porém não rolou nada. Ele chamou uns caras de outro bairro para tentar saber quem contou a Caio que Gu teria "falado demais". Pegaram um “pivete”, que deu uma explicação assustadora: como Caio estava planejando aterrorizar o bairro, deram o “nome de qualquer um” para evitar mais mortes. Então, Gu teria levado a culpa para que mais vidas supostamente fossem salvas. 

O fato é: ninguém sabe se tal plano contra Caio era real, se existiu tal alcagueta, se Caio estaria pronto para matar mais gente e se Gu levou a culpa para poupar outros. Tudo isso é especulação. A verdade concreta e dolorosa é: meu amigo foi brutalmente assassinado. Assim são os bairros violentos: você pode morrer por causa de bobagem e boataria. 

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

O Homem Obsoleto

Em uma cidade violenta, frequentar bar pode ser perigoso. É comum encontrar gente exaltada e sóbria disposta a quebrar o pau por motivos fúteis. Imagina, então, se estiver bêbada. Em dias de eleição presidencial, o bar pode se tornar mais perigoso ainda, e não por razões diretamente relacionadas à criminalidade. A defesa incondicional de líderes políticos também está levando à violência física e verbal. A obstinação nessa defesa pode ganhar contornos mais agressivos se o indivíduo estiver consumindo bebidas alcoólicas. 

No segundo turno de uma eleição para presidente, eu estive num bar na Barra quando dois homens começaram a discutir. Ambos estavam em lados opostos na disputa eleitoral.

- Seu candidato disse que vai legalizar o assalto!

- Mentira! Fake News!

- Ele é a favor do crime!

- O seu candidato é que é a favor do crime! Ele deu medalha para bandidos!

- Como você pode votar em ladrão!? Você dorme à noite?

- Quem vai votar em ladrão é você!

A cada fala, eles davam um gole no uísque. Estavam cada vez mais alterados emocionalmente.

- Pra mim quem vota em bandido é bandido!

- Então, você está esperando o quê para se entregar!? 

- VOCÊ ME RESPEITE, RAPAZ!

- VOCÊ É LADRÃO… SAFADO…

- VOCÊ DISSE O QUÊ? FALE DE NOVO, PRA VOCÊ VER SE NÃO QUEBRO SUA FUÇA, SAFADO!!

Os dois fecharam os punhos. Um deles derrubou um copo no chão acidentalmente, o que chamou a atenção do resto do bar. O barman correu para apartar a discussão. A situação piorou, apesar de não ter rolado agressão física.

- VOCÊ É NAZISTA!

- VOCÊ É QUE É NAZISTA! SEU CANDIDATO É NAZISTA! ELE DEFENDEU HITLER!

- MENTIRA! MENTIR É COISA DE NAZISTA!

Meia hora antes os dois estavam super tranquilos, confraternizavam, riam juntos. Até que começaram a discutir sobre política. Antes do debate acirrar, um deles passou por mim. Perguntou em quem eu votaria.

- Vou anular o voto. Não gosto de política. - respondi.

É claro que eu menti. Eu adoro política, mas costumo dizer a desconhecidos que não gosto apenas para evitar discussão fútil. Eu só conversava sobre política com meu pai e minha namorada. Como agora ela se tornou ex-namorada, a única pessoa no mundo com quem troco ideia sobre a política do Brasil é meu pai. O rapaz não gostou da minha resposta:

- Anular voto só ajuda o candidato bandido. - ele disse. 

Deu vontade de perguntar: você está falando de qual dos dois? Mas achei que não seria boa ideia. Depois de ter visto a briga, percebi que estava certo o tempo todo.

- Você é obsoleto, rapaz. - ele me disse. 

Confesso que não entendi. Por que eu seria obsoleto? Será que ele quis dizer outra coisa? Então lembrei que até uns dez anos atrás não era muito comum ver pessoas interessadas em política. Eu escutava muito a frase: “todo político é ladrão”. Talvez ele tenha dito que sou “obsoleto” porque eu afirmei que não gostava de política. Defender político com unhas e dentes era coisa de moderno. 

Também lembrei de um dos meus episódios favoritos de “Além da Imaginação" (1959):  “O Homem Obsoleto”.  É sobre um homem que foi preso e condenado por um Estado totalitário. O motivo? Como eu, ele era obsoleto, mas por outras razões. O Estado proibia a religião e os livros. O protagonista prisioneiro era crente em Deus e bibliotecário. Portanto, um “perfeito” obsoleto. 

Agora o detalhe singular: o Estado totalitário permite que ele escolha a forma como vai morrer. O condenado também pede (e é atendido) para que a sua execução seja televisionada e que o carrasco seja o único que saiba a forma como ele vai ser morto. 

Paro por aqui. Recomendo ao raro leitor que assista. 

Minhas reflexões posteriores tentaram relacionar esse episódio com a acusação de obsolescência contra mim. Talvez a fala daquele rapaz tenha algo de totalitário. Eu seria “obsoleto” porque não disse que apoiava o candidato dele. É uma possibilidade plausível. Mas não é possível afirmar com certeza. Pode-se dizer que a discussão agressiva foi uma manifestação de autoritarismo de ambos os lados. No entanto, também pode ter sido simplesmente uma sequência de atos irracionais de duas pessoas irritadas e bêbadas. A acusação de “nazismo” pode ter sido uma banalização oriunda de duas mentes totalitárias. Ou talvez tenha sido um xingamento que veio à cabeça num momento de raiva. Pode ser que depois os dois refletiram e perceberam que passaram dos limites.

Enfim, não quero saber. Vou assistir novamente “O Homem Obsoleto”. Adoro Além da Imaginação. 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Banalização do Nazismo

A acusação gratuita de nazismo virou moda. Alguns podem pensar que isso é apenas coisa de rede social. Não é. Tem Chefe de Estado citando o nacional-socialismo para fazer comparações falaciosas, insensíveis e descabidas. A barbárie não deixa de ser barbárie só porque recusamos a adjetivá-la com termos relacionados ao hitlerismo. Pergunto: será que precisamos chamar todo crime horrendo de “nazismo” para que isso desperte nossa intensa indignação? Não estou dizendo que a tragédia do Terceiro Reich é a "campeã" dos crimes contra a humanidade e que isso a torna incomparável. Cada tragédia envolvendo mortes de civis inocentes deve nos comover, porém não vamos fazer competição de crueldade. A motivação por trás da rotulação de "nazista" muitas vezes é a mesquinhez política. Adolf Hitler é uma figura satanizada (e com razão). Associar adversários políticos ao genocida é uma forma de demonizá-los. Todavia, a ignorância e a falta de reflexão também podem levar à má aplicação do termo "nazismo". Os manuais de lógica que me perdoem, mas farei bom uso do Declive Escorregadio. Começou com Chefes de Estado acusando o criminoso de guerra de ser “nazista”. O morticínio provocado por tal facínora tem a sua própria característica que o configura como um horror indescritível, Entretanto, será que pode ser enquadrado como “nazista”, que possuía uma singular perversidade? Em discussão na Organização das Nações Unidas (ONU), um Chefe de Estado discordou da acusação. - O homem é um monstro! No entanto, o método do nazismo era outro. - ele disse. Isso indignou representantes de outras nações. - VOCÊ ESTÁ DEFENDENDO ELE!? - Que absurdo! É claro que é nazismo! Encontramos biscoito club social no gabinete. O “social” escancara o fato: é “nacional-socialismo”. O líder perdeu o debate. O criminoso de guerra virou nazista. Os tribunais internacionais acataram a nova definição. Não demorou para qualquer crime de guerra ser transformado em nazismo. As especificidades do método nazista de extermínio foram ignoradas e desconsideradas. Um consenso foi se formando em torno da ideia de que a prática nazista se confundia com modos cada vez mais genéricos de concretizar o massacre. E só piorava. Tempos depois, em determinado país, a polícia covardemente matou dezenas de manifestantes, o que causou revolta no mundo. Na nova reunião da ONU, o Chefe de Estado desse país propôs que os policiais assassinos fossem considerados como “nazistas”. E mais uma vez houve uma voz dissonante: - Esses criminosos demonstraram frieza e crueldade. Mas o nazismo é possível no contexto da guerra. Nazismo e crime de guerra são sinônimos… De novo, o argumento despertou a indignação de outros líderes: - Como a ONU pode dar microfone para quem defende os nazistas que mataram os manifestantes!? - Eu não estou defendendo. Apenas acho que a acusação não cabe. Decidimos que os criminosos de guerra é que são nazistas! - Esse é um caso de guerra. Guerra do Estado contra o povo. Foi decidido que os policiais assassinos seriam julgados como nazistas no Tribunal Internacional. A violência policial começou a ser vista como sinônimo de nazismo. Pouco a pouco, crimes cada vez menos horrendos foram sendo considerados como “práticas nazistas”. Outro debate na ONU, meses depois, discutiu sobre a possibilidade de considerar corruptos como adeptos do nacional-socialismo. Uma voz dissonante ia falar: - Olha, eu discordo… No meio do argumento, ele parou. É a espiral do silêncio. Se rejeitasse a ideia de que corrupção equivale a nazismo, seria acusado de defender corruptos. Um outro Chefe de Estado disse: - Corruptos matam pessoas quando desviam dinheiro. Podemos considerar isso como genocídio. - Brilhante! - disse outro. A ideia foi aclamada na reunião. Todos aplaudiram. Agora, vamos da ONU para meu dia a dia. Estava no ônibus quando dois passageiros comentavam entre si sobre um assalto que o parente de um deles sofreu. O assaltante foi preso em flagrante e vai ser acusado de nazismo. É um caso que vai sobrecarregar ainda mais o tribunal que julga crimes contra a humanidade.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Os Homens da Madison Avenue

Conversava com uns amigos quando um deles recomendou uma série de TV americana.

- Mad Men! - ele disse. - Essa série é brilhante!

- Sobre o quê? - perguntou outro amigo.

- Sobre um grupo de publicitários que trabalha numa agência localizada na Madison Avenue.

- E por que é interessante?

- Há pouco a gente falava aqui sobre como conquistar mulheres. Eu acho que os protagonistas dessa série servem como modelos que qualquer homem comum pode se inspirar. 

Antes de ter computador, eu assistia TV por assinatura. Um dos canais disponíveis era a HBO, onde eu via Mad Men sendo anunciado durante o intervalo. Na época, não me interessei em assistir. As imagens que recordo são de homens com ternos, cabelos penteados e fumando cigarros. Aliás, os personagens fumam tanto que eu pensei que era uma série sobre a indústria do tabaco. 

Pouco tempo depois da recomendação do meu amigo, escutei outra vez sobre Mad Men. Na faculdade de Jornalismo, eu tive algumas aulas junto com alunos do curso de Publicidade. Certa vez, escutei dois alunos aspirantes a publicitários conversando a respeito. Eles estavam no primeiro semestre.

- A série dá alguma noção de como funciona uma agência de publicidade.

- Uma agência de publicidade na Madison Avenue dos anos 1960 dará noção a um aluno que vive em Salvador no século XXI?

- Alguma noção.

- A série é boa, mas não por causa disso.

Li a opinião da crítica especializada sobre Mad Men. É uma série bem elogiada. Tempos depois, comecei a assistir. O protagonista é carismático. É um homem bonito e bem-sucedido. Quem não queria ser como um cara assim? Há outros como ele. Entretanto, nem tudo é positivo. Esses homens são adúlteros em série, mentem para esposas e filhos, enxergam mulheres como meros objetos de uso e possuem relações problemáticas no trabalho e até entre eles mesmos. Sem falar dos problemas relacionados à época e lugar. A desigualdade racial é explícita: não há negros publicitários. Apenas faxineiros, ascensoristas e zeladores. Tudo bem, a série retrata os EUA dos anos 1960. Não vamos julgar esses valores com a mentalidade de hoje.

Mas esse risco de anacronismo explica por que é problemático enxergar tais personagens como “modelos” de homem sedutor ou de publicitário. O rapaz da universidade tem razão: não faz sentido buscar uma referência tão longe no tempo e espaço (Madison Avenue, anos 1960) para se ter noção de como funciona uma agência de publicidade. E menos sentido ainda teria a tentativa de imitar qualquer um deles na esperança de ter sucesso com as mulheres. 

Outro dia, vi no Youtube um terapeuta comentando sobre um paciente anônimo que se sentia frustrado por não conseguir “pegar mulher”. Ele teria assistido algum coach ensinando técnicas de conquista. Nos EUA, esses “especialistas em sedução” são chamados de pickup artists. O paciente aplicou as supostas técnicas e falhou desgraçadamente. A autoestima naturalmente caiu. 

Quando busca-se um modelo para imitar, surge uma lacuna entre a pessoa como ela é e a pessoa como ela quer ser. Quanto maior a lacuna, mais fracassada a pessoa vai se sentir. E quando tenta se inspirar em um publicitário americano dos anos 1960, cujo paradigma para a vida atual pode ser praticamente inviável em termos práticos, os danos para a autoestima podem ser extremamente nocivos.

Até imagino o terapeuta que vi no Youtube recebendo em seu consultório um homem que queria ser como Don Draper.

- Doutor, a minha secretária não cedeu aos meus encantos…

- Você precisa se aceitar como você é... Espera um pouco, você me disse que trabalha como operador de telemarketing, como tem secretária?!

- Eu não tenho!

- Então… Meu Deus…

Depois o paciente passa a virar um problema para a polícia. 

- Seu filho está entrando em agências de publicidade, dizendo que é publicitário e cantando as secretárias e outras funcionárias! - disse o delegado para a mãe do rapaz. 

O paciente usava o terno que ele comprou para ir à igreja. Passava gel no cabelo. Comprava maço de cigarro. E tentava seduzir mulheres. Falhou em tudo. O terno ficou sujo de vinho. Uma mulher derramou a bebida nele quando se sentiu ultrajada. Nem fumar o cigarro ele conseguia. Tossia tanto que parecia estar doente.

O terapeuta vai ter muito trabalho. 

Em tempo: Mad Men é, de fato, uma série brilhante.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

A piada do opositor

Se um preso quebrar o pau com um carcereiro por causa de uma caneta que lhe foi tomada, o raro leitor concordaria que seria uma reação desproporcional? Depende das circunstâncias, é verdade. Se fosse uma cadeia digna, com três refeições, bons tratos e cela limpa, talvez fosse exagerado querer brigar por isso. Na verdade, seria sinal de que o preso estava mimado demais. Tão mimado que não aceitava nem que lhe tirassem a caneta.

Mas e se for uma prisão atroz localizada no Ártico? Talvez pudéssemos até compreender a reação desmedida. Viver nas piores condições possíveis, e sem existir nenhuma esperança de sair dali, pode deixar qualquer preso pirado, até aqueles que são estoicos. 

Foi num lugar como esse que aconteceu o relato acima. Um preso político recebeu a punição de ficar na solitária, porque brigou por uma caneta. No entanto, chama mais atenção o que ocorreu na audiência em que esse mesmo preso teve com um juiz, por causa da briga. No diálogo com “vossa excelência”, o prisioneiro “esquentado” soltou uma piada, como se estivesse num ambiente descontraído e não numa prisão degradante reservada aos inimigos do regime:

- Excelência, eu vou lhe mandar meu número pessoal de conta bancária para que o senhor use seu enorme salário para aquecê-la, porque estou ficando sem dinheiro.

Observe a linguagem figurada: “aquecê-la”. É uma sutil referência ao local onde ele estava preso. Não era apenas o preso político que estava no “frio”. Sua conta bancária também estava. Em contraste, o juiz que decidiu sua punição estava no conforto, num lugar supostamente aquecido. Foi um humor feito com sutilezas.

No dia seguinte, esse preso estava morto. O nome dele? Alexei Navalny, de 47 anos, um dos maiores opositores do regime de Vladimir Putin, o autocrata russo. 

A piada de Navalny na audiência passaria totalmente despercebida se não fosse feita na véspera da sua morte. Alguns podem exaltar a firmeza do homem, pois fez humor numa situação horrível em que se encontrava: cumpria 30 anos, resultado de várias condenações em tribunais putinistas e farsescos, numa prisão com condições duríssimas e ainda seria punido com 15 dias de confinamento solitário. Há uma frase do humorista português Ricardo Araújo Pereira, presente na obra “A doença, o sofrimento e a morte entram num bar”, que pode ser perfeitamente aplicada nesse caso: “o humor pode ser […] uma estratégia para reagir ao sofrimento”. 

Ele estava numa condição em que era muito complicado se adaptar. O humor ajuda a nos afeiçoarmos ao mundo ou à situação em que nos encontramos. O humor é uma forma de lidar com a adversidade. Navalny parece que percebeu isso. A descontração diante da punição era inútil, pois não mudaria nada: ele continuaria preso e ainda acabaria na solitária. Porém, o humor é uma “espécie de mau perder”, como escreve Ricardo Araújo Pereira. “É uma atitude de valor equivalente à da criança que, depois de levar uma palmada, diz, de lágrimas nos olhos: ‘não me doeu’”, afirma o humorista português.

O sistema político putinista impede a ascensão de qualquer opositor que possua discursos inflamados contra o Kremlin. Se um político consegue apoio para disputar a eleição, e possui uma retórica contundente contra o atual governo russo, tem a candidatura barrada por algum motivo: inventa-se crimes, cria-se argumentos jurídicos falaciosos e até mesmo alega-se “erros técnicos”. 

Mesmo que o candidato seja totalmente limpo, a criatividade dos asseclas de Putin não tem limites. O político pode ser tão honesto que nunca foi capaz de estacionar em vaga para deficiente. Não importa. Vão encontrar uma forma de barrá-lo:

- Sinto muito, senhor. Sua candidatura foi indeferida.

- Mas como?! Não fiz nada de errado. Não há nenhum erro técnico.

- Os vizinhos reclamaram que o senhor colocou músicas de The Who com um volume muito alto, o que incomodou todo mundo no seu prédio. É o suficiente para entendermos que o senhor não tem condições de concorrer.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

A Farmácia

Se Franz Kafka fosse vivo nos dias de hoje, teria escrito “A Farmácia”, em que o personagem principal passaria por dificuldades burocráticas absurdas ("kafkianas") só para conseguir comprar o medicamento que precisa.

Aconteceu comigo.

Uma frase exagerada, mas um tanto verdadeira, se tornou trivial aqui em Salvador e, talvez, no resto do Brasil: “em cada esquina há igreja e farmácia”. Só nas ruas de Brotas existem incontáveis farmácias (e igrejas). E eu fui escolher logo aquela em que os funcionários são extremamente rigorosos quanto à literalidade das receitas médicas. A pirâmide invertida que me desculpe, mas eu vou começar do começo e não do fato mais importante. 

Chego e encontro o segurança usando uma máscara para prevenir COVID-19.

- Boa tarde.

- Boa tarde.

Todos os funcionários usavam esse tipo de máscara. Tudo bem. Continuam cautelosos. Vou para a fila. Um rapaz e sua namorada estão na minha frente. Há três caixas. Dois estão atendendo clientes e há um caixa vago. Logo chega mais um funcionário e assume esse caixa. O casal vai ser atendido.

De repente, um homem, que já estava sendo atendido, dá uma tapa forte no balcão. Todo mundo olha para ele.

- Você não pode estar falando sério…. - ele diz. As mãos tremiam. O cara estava furioso.

- Eu não posso. Vai “dar B.O” pra mim. - respondeu o atendente.

“Dar B.O” significa se meter em problemas.

O segurança se aproxima e tenta convencer o homem furioso. Enquanto isso, tirei o celular do bolso e tentei me distrair. Não gosto de conflitos que são barulhentos e que chamam atenção. Fiquei distraído vendo vídeos de gatos e não ouvi o que o homem nervoso estava dizendo ao sair acompanhado pelo segurança.

Guardei o celular. Vi o casal conversando com a atendente. O rapaz dizia:

- Por causa de uma vírgula!

- Por causa de uma vírgula? - perguntei. 

A atendente estava usando uma lupa para ler a receita que a namorada do rapaz tinha dado a ela. Um rigoroso escrutínio. 

- Sim, eles rejeitaram a receita daquele homem porque faltou uma vírgula.

- Isso não pode ser sério. - eu disse. 

Foi quando me chamaram.  

- Boa tarde.

- Boa tarde. Em que posso ajudar?

- Ritalina.

Peguei minha receita amarela e dei. O atendente deu a primeira olhada. 

- Já volto. - ele disse. Foi a uma sala. Voltou com uma lupa.

Enquanto ele examinava a receita, falei:

- Gostei da cautela de vocês.

- Que cautela? - ele perguntou.

- Mesmo com o fim da pandemia, vocês ainda usam máscara.

- Não é nada disso. Usamos porque a Anvisa ainda está analisando o nosso requerimento.

- Requerimento? A Anvisa precisa responder um requerimento para vocês pararem de usar máscara?

- Sim. Se tirarmos antes, pode dar problema.

Foi então que veio a má notícia.

- Eita, rapaz. Está faltando o “m” em “mg”. - disse o atendente.

- Eu preciso muito do medicamento. Vocês não podem deixar passar essa?

- Não. Você só poderia comprar ritalina de 10g. No entanto, não vendemos. Aliás, nem existe. Aqui só temos de 10mg.

- Eu vou ter que voltar à clínica só para pedir à médica que escreva um “m” na receita?

- Sim… - respondeu o atendente.

- Pega uma caneta e desenha você mesmo. O que custa?

- Não temos caneta azul. Mas já fizemos um requerimento.

- Isso é um absurdo!

- Entendo sua frustração. Porém, eu apenas sigo a lei.

O segurança se aproximou de mim. A princípio, não entendi. Eu não estava procurando nenhuma confusão. Então, notei que ele queria me ajudar, como ajudou o outro cliente.

- Se eu fosse você, cairia fora logo, antes que tenha que fazer um requerimento para ir embora da farmácia…

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Assassinato no Condomínio


Olho o celular pela manhã e vejo a notificação do aplicativo de um portal de notícias. A informação: um vizinho matou o outro dentro de um condomínio no bairro de Caji, em Lauro de Freitas (Região Metropolitana de Salvador). O assassino utilizou uma arma de fogo.

Conheço Caji, pois tenho tios que moram lá. E também já trabalhei ali perto. Meus tios moram nesse lugar há uns vinte anos, suponho. Vou nessa casa deles desde quando eu era pequeno. Há muito tempo, tinha mais matagal do que casa. Era um lugar assustador, principalmente à noite. Certa vez, meu tio e umas pessoas que estavam com ele em seu carro foram abordados por criminosos que emboscavam pessoas para assaltar. Ele conseguiu arrancar com o carro e fugir, mas os bandidos dispararam. Ainda bem que ninguém ficou ferido. Ao chegar em casa, o susto ao ver as marcas de bala no veículo.

O tempo passou e Caji virou um lugar supostamente menos assustador. Hoje há mais casas do que matagal. As estradas de barro foram asfaltadas. Minhas aulas na autoescola foram nas ruas de Caji. Condomínios, prédios, comércio… tudo isso emergiu nesse bairro. Hoje tornou-se um lugar “urbano”. As coisas mudaram tanto que até o nome pode ser alterado. Meu tio sugeriu isso uma vez.

- Qual o nome desse bairro? Caji? - perguntei a ele.

- Olha, a gente está querendo mudar esse nome. - ele respondeu.

A “urbanização” de Caji não significa, porém, que o problema da criminalidade e o medo da violência cessaram. Mesmo com ruas asfaltadas, casas e condomínios por toda parte, o perigo continua. A rua onde mora meus tios está quase sempre deserta, mesmo em plena luz do dia. A faxineira da casa deles me contou que por ali há inúmeros assaltos. Os bandidos usam carro ou moto para cometer crimes.

- Outro dia vi um motoqueiro puxando a bolsa de uma mulher. - ela disse.

Também escutei relatos sobre moradores “apressados”. No ponto de ônibus, uma mulher disse:

- Os moradores daqui chegam e entram correndo em casa. Há o medo de que os bandidos os abordem na porta de casa e depois entrem.

Ela própria parecia estar com pressa para sair daquele bairro. A pressa me contagiou, pois era um lugar deserto. Eu também estava doido para sair daquele ponto de ônibus.

Não escutei ou li nada a respeito, mas é fácil supor que já houve invasão de domicílio em Caji. Eu fico preocupado, pois a porta da garagem da casa de meu tio abre e fecha bem devagar quando ele chega com o carro. Dá tempo para um ladrão rendê-lo e entrar na casa.

O medo de ser rendido por bandidos pode ser observado em Caji. Os condomínios possuem arame farpado, câmeras e seguranças. As casas possuem muros muito altos, exigindo que o bandido tenha habilidades de Homem-Aranha. No entanto, nada disso consegue impedir a violência de alcançar os moradores. Como diz a notícia citada no início da crônica, uma pessoa foi assassinada dentro de um desses locais.

Não se sabe como ou por que o atirador, que está preso, tinha uma arma. É possível que, de tanto escutar relatos de violência na área, o agora criminoso tenha optado por adquirir uma arma, acreditando que ela seria útil para a autodefesa. Uma hipótese plausível. O aplicativo do portal de notícias não informou (ainda) as circunstâncias do crime. Sabe-se que uma “discussão” teria descambado para o homicídio. Seria, portanto, um possível caso de assassinato por motivo fútil. A arma, cujo suposto propósito seria enfrentar ladrões e assaltantes, acabou sendo usada para apagar o vizinho. Ao ser interrogada, a arma certamente dirá isso em sua defesa.

- Ele me garantiu que eu só seria usada contra bandidos da rua.

Há manifestações da violência que conseguem driblar arame farpado e alarmes, pois podem aparecer de onde menos se espera. Uma pessoa de bem emocionalmente alterada, e portando uma arma, pode acabar sendo tão ou mais perigosa que um ladrão na rua.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A entrega - uma crônica sobre a paranoia


Quarta-feira de Cinzas. Alguém grita meu nome do lado de fora do beco onde fica minha casa. E grita meu nome bem alto. Até me assustei um pouco. Em alguma casa na escadaria onde fica o beco, uma pessoa que me conhece diz à pessoa que me chama:

- Ele mora nesse beco aí.

A pessoa que me procura revela-se como um suposto entregador, que teria uma suposta encomenda para mim. Devo descer e atendê-lo sem maiores preocupações? A pergunta pode parecer estranha para o raro leitor, mas uma postura cautelosa assim não é incomum por aqui. Eu moro em um dos bairros mais violentos de Salvador. E há pelo menos dois conhecidos casos de homicídios em que o assassino se passou por entregador de encomenda. No entanto, tratam-se de ocorridos relacionados ao tráfico de drogas. Eram bandidos querendo tomar o território de outros. Não há motivo para alguém querer me apagar. Ou será que há? Talvez algum torcedor do Atlético Mineiro cansado de me assistir gozando do time dele em redes sociais. Talvez algum torcedor do Botafogo, porque eu disse que a Copa Conmebol era a “terceira divisão da América”. Algum fanboy pode querer me matar só porque eu falei mal da série televisiva favorita dele. Ou, quem sabe, alguma paquita de político me colocou na mira, pois eu certamente zombei de seu líder. É, parece que a fila é grande!

E tem mais outro detalhe: uma entrega em plena Quarta-feira de Cinzas?

Há uma piada com um fundo de verdade entre bandidos e pessoas de bem aqui na área: entrega na Quarta de Cinzas? Não atenda, pois é cilada. Pode ser um matador enviado ou a polícia querendo flagrar você usando tv a cabo pirata.

Como se pode notar, a paranoia não é nada insólita por aqui. Thomas Pynchon, um dos meus autores favoritos, abordou sobre a paranoia em seus livros. Em “O Leilão do Lote 49” - publicado em 1966, cujo enredo leva a uma (suposta?) conspiração envolvendo empresas de distribuição postal -, a protagonista vive acompanhada pela paranoia. Então, me lembro que eu posso estar envolvido em minha própria conspiração postal. Quando criei a lista acima de pessoas que poderiam desejar o meu fim, esqueci de mencionar os Correios. Eu fiz várias reclamações contra essa estatal em um site na web. Vai ver ficaram incomodados e estava na hora de acertar as contas. O entregador não estava com o tradicional uniforme amarelo e azul. Todavia, o assassino não iria dar esse mole. Pelo que sei, a máfia, as gangues do tráfico de drogas ou qualquer outra organização criminosa não mandam seus sicários vestirem o uniforme antes de irem matar alguém.

De qualquer forma, desço para atender. Apareço da janela. Qualquer movimento suspeito ou brusco com as mãos e me jogo no chão. Ele coloca as mãos no bolso. É agora?!

Tirou uma caneta.

- Você é o próprio destinatário?

- Sou.

- Diga seu RG.

Dei minha numeração do RG. Ele anota num papel. Pergunto:

- É só isso?

- Sim. - ele disse.

- Obrigado.

- Por nada.

- Trabalhando numa Quarta de Cinzas?

- O que é que tem?

- Não é comum.

- Você acha que sou algum carteiro? - ele disse antes de ir.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

História de Carnaval (4)


“O Carnaval morreu, viva a quaresma!”, escreveu Machado de Assis, em crônica publicada. Daqui a dois dias, o texto em que ele escreveu isso fará exatos 147 anos. Utilizo o trecho para iniciar a minha própria crônica. E, assim como o maior escritor brasileiro fez no mesmo texto, esclareço que não se trata da decretação do fim do Carnaval para sempre, e sim que a festa acabou. No meu caso, ainda não acabou, mas está quase.

Passei a terça-feira de Carnaval enfiado em casa. Ao acordar, com dor de cabeça, tomei analgésicos. Dormi mais um pouco, levantei, fiz o que faço habitualmente: tomar banho, escovar os dentes e pegar o café antes de “abrir” os jornais e iniciar a prazerosa leitura. Sim, “abrir” está entre aspas porque eu não abro literalmente o jornal. Eu sou um jornalista do século XXI. Os jornais que leio são fac-símiles digitais de edições impressas. Depois, concluí a série “Sopranos”, uma das grandes produções televisivas da história. O final foi ambíguo.

A tela preta. Esse assunto tomou conta da minha cabeça pelo resto do dia. Busquei fontes na internet que pudessem dar alguma explicação fundada em argumentos fortes, já que o criador do programa só deu, até agora, respostas vagas que só servem para conservar (ou ampliar) a ambiguidade. Blogs, jornais, revistas, portais de notícias interpretam algumas respostas do criador como indicativos de um fim negativo. Porém, achei quem defendesse a ideia de que aquele momento abrupto escondia um final menos ruim ou neutro. Eu acho os argumentos pró-final não-trágico mais fortes do que aqueles que defendem que o fim da série significou também o fim da vida para o protagonista. Mas me pergunto se eu realmente penso que os argumentos são mais fortes ou se eu só quero acreditar nisso, por causa da simpatia que tenho por Tony Soprano, o vilão protagonista da série.

O filósofo e lógico Bertrand Russell escreveu um texto irônico intitulado “Como se tornar um homem de gênio”. Li novamente. Eu realmente avaliei os “argumentos a favor dos diversos pontos de vista” e tentei “chegar a uma conclusão ponderada”? Ou será que eu estou torcendo por Tony e isso influenciou e me pré-condicionou a acreditar que mais fortes são os argumentos que sustentam a sua integridade física no final da série?

Olhei pela janela e como a tela preta de Sopranos, ou seja, de forma repentina, o Carnaval voltou a ser assunto para mim.

Vi um amigo e vizinho deitado sobre umas cadeiras, em frente à casa dele, no beco onde moro. Saio e pergunto o que há.

- Estou sem as chaves. Tenho que esperar minha mãe voltar. - ele diz.

- Estava na farra do Carnaval?

- Sim. E acho que exagerei.

Ele dormiu fora de casa. Convidei-o para tomar café comigo na delicatéssen do bairro. É um estabelecimento que não fecha quase nunca. Fomos. O local estava relativamente vazio. Sentamos numa mesa.

- Pelo menos você dormiu na casa de alguma mulher, né?

- Que nada. Conheci algumas minas. Mas mal conversamos… - disse ele. - Um amigo meu que deve ter dormido no hotel com uma gringa que ele conheceu.

Enquanto meu amigo falava, notei que um homem de jaqueta preta olhava para a nossa mesa. Parecia que estava de olho no meu amigo. Ele notou que eu estava olhando e veio na nossa direção. Pensei que ele ia parar na nossa mesa e dizer alguma coisa, mas passou direto e foi ao banheiro.

- Aquele cara estava te olhando. - eu disse.

- O que passou aqui agora?

- Sim.

- Não quero saber. Só me conta essas coisas se for mulher me olhando.

Esse meu amigo foi casado até pou——

(Tela preta)

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

História de Carnaval (3)

 

Durante o Carnaval, a arruaça pode acontecer a qualquer momento, a qualquer minuto. Sim, arruaceiros podem entrar em ação qualquer dia, qualquer hora, mas durante a passagem do trio elétrico há muitas pessoas acompanhando. Pessoas bêbadas, frustradas, em busca de adrenalina e, é claro, aquelas que só querem se divertir. Enquanto a música toca, várias pessoas começam a pular para um lado e para o outro e começam a movimentar os braços “colocando a base”, ou seja, como se estivessem prontas para dar soco; prontas para a briga. Estão aí as condições para a arruaça se concretizar.

E num determinado momento, ela acontece numa rua da Barra.

Dois homens no meio da multidão chegam a trocar socos brevemente. As pessoas ao redor assistem e algumas até torcem para o pau continuar a quebrar. Policiais puxam os cassetetes e dispersam os valentões e quem assistia. Toda atenção por ali estava centrada na pancadaria.

Até que o trio elétrico passou próximo a um bar. Sim, há vários bares pela Barra. Mas ali tinha algo diferente; havia algo que atraía pessoas em torno. Era um telão. Todavia, diferentemente dos outros bares nas proximidades, ali não transmitia a cobertura do Carnaval. Transmitia um evento esportivo. Não era futebol. Quer dizer, os norte-americanos chamam esse esporte de “futebol”. Nós, brasileiros, chamamos de “futebol americano”. Até alguns policiais pararam para ver. Não era um jogo qualquer. Era a grande final da National Football League (NFL), chamada de “Super Bowl”. Dentro do bar havia torcedores das duas equipes que estavam na decisão: Kansas City Chiefs enfrentava o San Francisco 49ers. A cada touchdown, a galera vibrava como se fosse um gol.

No entanto, nem todos entendiam muito bem o jogo.

- O que é touchdown? - perguntou um rapaz.

- O que é fumble? - perguntou outro. - O que é interception?

- O que é punt? - perguntou um policial.

Para cada dúvida sempre havia alguém que pacientemente explicava. Eram os “entendidos” do jogo. Normalmente, poderia se identificar um desses conhecedores pela camisa que vestiam. Alguns pularam no Carnaval, mas pouco antes do início do jogo, tiraram seus abadás e vestiram a camisa do seu time (ou franquia) que disputava a final.

Um torcedor do Kansas City Chiefs revelou qual a temporada em que começou a torcer para essa franquia:

- Desde a temporada passada, quando esse time foi campeão. - ele diz. - Eu comecei a me interessar por futebol americano desde o ano passado.

Notei que havia mais torcedores dos Chiefs do que dos 49ers naquele bar. As franquias recentemente vitoriosas tendem a cativar mais. Alguns anos atrás, havia a “febre” de torcedores do New England Patriots. Um torcedor dos 49ers explicou a sua paixão por essa franquia:

- Já estive na Califórnia. Torço para tudo que vem de lá. - ele afirmou.

O Carnaval sendo festejado lado a lado com o Super Bowl pode até ser um fenômeno singular. Entretanto, não surpreende. O futebol americano tornou-se um fenômeno global. Assim como a liga americana de basquete. O futebol (que joga com os pés) pode ser ainda a maior paixão do brasileiro, mas não é a única. No guarda-roupa, as camisas do Bahia ou do Vitória estarão lado a lado com camisas de franquias de futebol americano e de basquete dos Estados Unidos.

A final entre Chiefs e 49ers foi emocionante. Os Chiefs estavam perdendo na prorrogação, porém conseguiram virar o jogo e conquistar o bicampeonato consecutivo. Houve comemoração de alguns clientes no bar.

Horas depois, nas proximidades, uma nova confusão. A polícia intervém de forma insólita. Policiais correram como jogadores de futebol americano e derrubaram os baderneiros.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

História de Carnaval (2)


Nem mesmo os profetas resistem ao Carnaval. Em Salvador, durante passagem de um bloco, uma cantora “previu” que o arrebatamento - aquele evento aguardado pelos evangélicos, em que Jesus descerá dos céus para buscar os convertidos - “tem tudo para acontecer entre 5 e 10 anos”. Como ela sabe? Ninguém faz a menor ideia. Um evangélico certamente dirá que Deus a avisou. Mas como foi isso? Por e-mail? mensagem do Whatsapp? De forma subliminar mediante alguma dancinha do TikTok? Não ficou claro.

A profeta ainda deu aquele alerta:

- Procure o Senhor enquanto é possível.

Onde procurar o Senhor? Somente nas igrejas, segundo os evangélicos. Mas e aquela conversa de que Deus é onipresente? Ninguém toca no assunto por causa da possível contradição.

A cantora-profeta usou do microfone para passar uma mensagem religiosa. Ela provavelmente se sentiu “obrigada” a levar o “evangelho” para aquele lugar onde estariam os que “caminham para a perdição”. Há evangélicos que enxergam o Carnaval como festa do diabo. Portanto, os supostos enviados de Deus precisam salvar almas durante as festas. É por isso que não é insólito encontrar evangélicos distribuindo folhetos com mensagens cristãs durante os festejos carnavalescos.

Alguns apenas dizem:

- Jesus te ama!

Outros tentam convencer a pessoa para frequentar a igreja deles:

- Vamos, irmão. Jesus tem um bom futuro para você! Não fica nesses locais de perdição, não! O mundo é do Inimigo.

Certa vez, conversei com um desses irmãos. Ele praticamente estava me obrigando a ir para a igreja dele.

- Olha, não estou interessado. - eu disse.

- Não se deixe levar pelas amizades. - ele retrucou. - Depois, você vai estar salvo. Eles, não. Bebida, festa… tudo isso é tentação do diabo. Não caia nessa!

Há pessoas bem-intencionadas querendo genuinamente “salvar pessoas”. Com essas, vale o diálogo. Outras, no entanto, possuem segundas intenções por trás da suposta mensagem de salvação. Intenções pecuniárias. Grandes igrejas adotaram o modelo empresarial em que o pastor e o “obreiro” precisam bater metas - isto é, trazer fiéis para a pretensa casa de Deus. A alma salva acaba equivalendo a um “bônus” no fim do mês.

Agora, uma tese mencionada antes merece um pouco mais de abordagem. Estou falando do Carnaval ser supostamente uma “festa do diabo”. Muitos crentes imaginam o diabo como um grande vilão, o “Inimigo”, que maquina nos bastidores para levar o máximo de pessoas possíveis para o inferno. Mas vamos levar em consideração não esse diabo, e sim aquele que aparece no Livro de Jó: como um funcionário de Deus. Talvez Deus tenha feito uma outra aposta com o diabo. Uma aposta que não apareceu em nenhum dos ditos livros sagrados. Cabe ao cronista imaginar como foi:

- Senhor, quer apostar que basta um estímulo para que seus servos deixem de te servir? Basta uma festa com fantasias, música alta, desfile, bebedeira, acesso fácil a drogas recreativas… para que te abandonem em prol dos prazeres do mundo?

- Não creio que acontecerá isso. E ainda me garanto em relação a mais uma coisa: além de não sucumbirem aos prazeres da festa, meus servos ainda vão conseguir converter e tirar muitos foliões da sua festa, Satanás.

Acho que Caetano Veloso tinha razão quando profetizou: “o Carnaval é invenção do diabo. Que Deus abençoou”.

Porém, não me perguntem quem está ganhando essa aposta.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

História de Carnaval


É Carnaval! Estou sentado em um bar no Pelourinho, afastado o suficiente dos desfiles e da música alta. Observo o comportamento de dois homens que estão na mesa ao lado. Um deles - fantasiado de bobo da corte, com um chapéu no formato de cone e cheio de guizos - se chama Fortunato. O outro, que trajava vestes normais, não consegui saber o nome. Duas mulheres estavam com eles. Fortunato, que parecia estar bêbado de tanto beber vinho, zoava sem parar o suposto amigo. Este aparentava estar farto, zangado e doido para “meter a porra” no seu chalaceiro. Ele se segurava, às vezes apertava o punho, como se estivesse se preparando para agredí-lo, mas logo amolecia.

Em determinado momento, Fortunato disse algo - não consegui escutar o quê - que constrangeu (ainda mais) o seu alvo de gozação. As mulheres até saíram de perto dos dois. O zoado se levantou com ímpeto e começou a falar. Ele viu que eu estava prestando atenção no seu desabafo e continuou a falar, desta vez olhando para mim.

- Esse cara… - disse ele. - “comeu água” o dia todo. E quando “come água”, fala merda sem parar.

Fortunato colocou os braços em torno do pescoço do "amigo" zoado e também começou a falar olhando na minha direção.

- Ele é meu parceiro. Ele sabe disso. - disse Fortunato, que falava como se estivesse assaz embriagado.

Depois, o clima de uma eventual altercação aparentemente se desfez porque os dois começaram a falar de vinho. Ainda era perceptível que o homem zoado estava um tanto zangado. No entanto, ele se continha.

- Vamos ali no porão. Eu quero te mostrar um barril de vinho que adquiri. - disse o homem para Fortunato.

Ao dizer isso, percebi que o homem zoado passou de zangado para malicioso. Havia alguma segunda intenção por trás daquele convite. Só não faço ideia do que seria. Na última vez que vi ambos, pouco antes de supostamente descerem ao porão, o amigo zoado ainda expressava uma malícia sutil; Fortunato ria e demonstrava jubilo.

Horas depois, comecei a refletir sobre essa alegria de Fortunato. Notei que as mãos dele estavam cheias de calos. Parecia um trabalhador da construção civil, talvez seja até um “peão”, desses que saem para trabalhar às sete da manhã e só voltam para casa às dez da noite. Se for realmente isso, aquele verso da música “Sonho de um Carnaval”, de Chico Buarque, foi seguido à risca por Fortunato: “Carnaval, desengano/Deixei a dor em casa me esperando”. Carnaval seria a festa em que surge a oportunidade de esquecer, pelo menos um pouco, as aflições do cotidiano. O autor de Eclesiastes disse que todas as obras “debaixo do sol” são “vaidade” e “aflição de espírito”. Uma interpretação contemporânea pode considerar (também) que as “obras” citadas pelo Rei-Filósofo são as obras da construção civil. Em tese, o Carnaval permite um descanso para a aflição do espírito. As próprias fantasias indicam isso. Na mesma canção de Chico, o eu-lírico diz “e brinquei e gritei e fui vestido de rei”. O trabalhador pode fingir que é rei, que é príncipe… o que ele quiser.

O problema é que nem todo mundo deixa a dor em casa esperando. Nem a dor, nem a raiva, nem a frustração. O Carnaval acaba virando a festa em que pessoas acabam descontando nas outras toda a aflição do seu cotidiano. Há brigas e até mortes. Alguns vão às ruas apenas para bater. Às vezes a forma bruta de “desabafar” nem é com o uso da violência física. É possível que Fortunato tenha encontrado na gozação uma forma de descontar sua aflição em cima do seu suposto amigo. E ao sorrir maliciosamente, o homem alvo de chalaça talvez estivesse pensando em algum modo de revidar a agressão.

Ao trazer o verso de Eclesiastes aos dias de hoje, talvez seja possível afirmar que o trecho “todas as obras debaixo do sol” tenha um sentido mais literal e rigoroso. Tudo é “vaidade” e “aflição de espírito”, inclusive o próprio Carnaval.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

A difamação da loucura


Na casa lotérica, um homem chamado Erasmo se bateu em mim acidentalmente. Sei que ele se chama assim porque ele deixou a carteira de identidade cair no chão. Abaixei-me para pegá-la e acabei vendo o nome.

- Desculpe, rapaz. E obrigado. Tô com a coluna ferrada, não seria uma boa ideia me abaixar assim. - ele me disse e gargalhou logo em seguida.

- Tranquilo. - respondi.

Era um dia de sábado e a lotérica estava mais lenta e modorrenta do que o normal. Eu já estava há quase meia hora na fila. Dos quatro guichês, três estavam disponíveis. Na prática, apenas dois estavam. Um homem tomou conta do guichê nº1 como se fosse dele. Ele estava ali desde antes de eu chegar. Talvez por uns quarenta minutos. Isso estava começando a revoltar as pessoas da fila. Um outro homem que tinha acabado de ser atentido resolveu externar essa raiva:

- Esse cidadão está ali há muito tempo! Acho que está há uma hora ali! Isso é um absurdo!

- O que ele está fazendo ali? - perguntou uma mulher.

- Quem sabe?! Parece que é jogo.

Na casa lotérica havia uma televisão. Era hora do almoço. Ou seja, a hora em que os chamados “programas populares” capricham nas notícias em que a carnificina é escancarada. Como se sabe, é uma boa ideia ver e ouvir porcaria enquanto se está almoçando. Informaram sobre um homem que havia torturado e assassinado o outro por motivações políticas. Não apenas o torturou e matou por uma razão fútil, mas tentou sumir com um corpo. É melhor omitir, nesta crônica, o resultado disso. Porém, esse bárbaro caso virou assunto de três coroas que estavam logo atrás de mim na fila. Olhei para trás e vi que Erasmo estava entre eles.

- Esse assassino é maluco! - disse um deles. - Pra fazer algo assim só pode ser louco!

- Eu também acho. - disse outro. - Uma pessoa normal não faz isso.

Erasmo interviu a favor da loucura.

- Loucura nada! Isso aí é perversidade. As pessoas são cruéis e não perdem a oportunidade de jogar a culpa na loucura, na maluquice.

A reflexão de Erasmo fazia sentido. Há quem creia que o ser humano é incapaz de cometer crueldade se estiver com o pleno funcionamento da sua cognição e razão. E isso depois de toda a maldade que já aconteceu. É evidente que há assassinatos provocados por gente que não bate bem. O problema é querer aplicar essa tese sem um mínimo de análise. Há criminosos usando dessa desculpa para justificar seus crimes. Há a madame que profere xingamentos racistas contra um entregador de aplicativo e quando o seu espetáculo do horror é exposto para o Brasil ver, ela diz que fez aquilo porque não tinha tomado remédios. No interior da Bahia, uma mulher invadiu a loja de uma judia e a agrediu e xingou. Nas redes sociais, foi chamada de “louca”. É a loucura sendo difamada.

Enquanto isso, o homem continuava no guichê nº1. Estava há mais de uma hora ali. Eu estava há quase cinquenta minutos esperando minha vez. A fila andava como uma lesma em câmera lenta. E a loucura continuava sendo assunto, mas não a loucura que supostamente provoca a barbárie e, sim, a suposta loucura que estaria fazendo aquele homem se apoderar do guichê. As pessoas começaram a discutir sobre a sanidade mental dele. Uma mulher que estava lá na frente, e que se dizia médica, deu o “diagnóstico”:

- Não é normal. A pessoa não querer sair de um guichê e gastar uma fortuna com jogos de loteria… Não é normal.

Olho para trás e vejo Erasmo balançando a cabeça negativamente. Ele estava indignado. A loucura mais uma vez estava sendo responsabilizada pelos atos do ser humano.


quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Introdução à economia

 

Meus tios vieram aqui em casa. Convidei-os para entrar. Estavam com pressa, pois havia outros compromissos. Em determinado momento, meu tio revelou que se cadastrou para catar latinhas de cerveja no Carnaval de Salvador. Depois ele vai vendê-las. Minha tia questionou se as latinhas estariam mais caras ou mais baratas em relação ao Carnaval do ano passado.

- Acredito que estará mais cara se o dólar subir. - afirmou meu tio.

- E tem a ver uma coisa com outra? - perguntou minha tia.

- Claro que tem. - ele disse.

- Tem? - perguntou minha tia, olhando para mim.

Eu poderia pensar em alguma explicação. Em vez disso, peguei um livro antigo de Introdução à Economia e emprestei a meu tio.

- Está tudo aí! - eu disse.

Minha tia me olhou quase rindo. Ela sabia que meu tio não entenderia nada.

- Eu entendo! - ele disse.

- Então me diga que gráfico é esse. - disse minha tia, apontando para um gráfico presente no capítulo “Monopólio”.

Apesar de ter escrito vários textos de jornalismo econômico, essa relação entre dólar e latinhas amassadas de cerveja nunca havia passado pela minha cabeça. Conheço a relação entre juros e dívida pública, entre inflação e desemprego, entre o próprio dólar e a inflação… enfim eu conhecia um monte de relações entre assuntos econômicos, porém nunca havia refletido sobre a aplicação desses temas em uma das mais rudimentares relações de troca no sistema capitalista: um vendedor de latinhas negociando o preço delas na venda ao ferro-velho.

Comecei a refletir e me questionei se não teria relação entre os preços das latinhas amassadas e a Lei de Oferta e Procura. Ao procurar saber sobre esse conceito, lembrei de uma frase do jornalista econômico Joelmir Beting:

- Boiei e continuo boiando até hoje.

Essa frase é muito utilizada na editoria de Economia dos jornais. Em uma redação que frequentei, havia adesivos com essa frase por toda a mesa dos jornalistas de economia.

Fui na faculdade de economia e questionei um professor.

- Professor, me explique a lei da oferta e procura.

Ele deu uma explicação abstrata. Até fez gestos com as mãos como se estivesse desenhando um gráfico.

Boiei e continuo boiando até hoje.

Ele poderia simplesmente dizer que, “tudo o mais constante”, o preço de um produto vai subir se a oferta estiver menor do que a demanda. E vai diminuir se a oferta estiver maior do que a demanda.

O fato é que muita gente acha que vai parecer inteligente se usar uma linguagem rebuscada e recheada de jargões técnicos. A linguagem complexa e densa serve para impressionar os leigos, que supostamente ficam embasbacados diante do especialista. Mas tem razão Albert Einstein, o gênio da física, quando supostamente atrelou a simplicidade ao conhecimento. Não sei se ele realmente disse que “se você não pode explicar de forma simples é porque não entendeu bem o suficiente”, mas sei que um livro que ele escreveu sobre a Teoria da Relatividade é simples e relativamente (sem trocadilho) acessível.

Depois minha tia me liga e conta que meu tio conseguiu vender as latinhas por um preço muito bom. Ela conta que ele usou de argumentos tirados do livro que emprestei a ele. Elaborou uma explicação complexa sobre lei de oferta e procura que deixou o dono do ferro-velho impressionado. O cara chegou a dizer:

- Você é um especialista! Deve saber do que está falando!

Agora meu tio quer entrar na faculdade de economia.

Acusação injusta na televisão

Era noite, meu vizinho começou a receber sucessivas mensagens em seu Whatsapp. Ao lê-las, foi tomado pelo susto. Soube que seu rosto aparece...